Não é novidade que a religião e a pauta religiosa (às vezes também apresentada como pauta de costumes) ocupam um espaço cada vez maior nos processos políticos e eleitorais, rivalizando até mesmo com temas clássicos da disputa como saúde, segurança e educação. O recrudescimento da questão religiosa no âmbito político nas últimas eleições denota que o mundo de fato nunca se desencantou.
Na modernidade, o direito é sobretudo um fruto da política. Por isso, o amálgama entre o discurso político e o discurso religioso, que aparece cada vez mais claro em um número cada vez maior de candidaturas e campanhas de diversos espectros ideológicos, certamente trará reflexos diretos e bastante sensíveis ao processo legislativo e na produção normativa de nosso ordenamento jurídico. Essa constatação coloca em evidência, mais do que nunca, os lugares da liberdade de religião ou crença (também chamada de liberdade religiosa) e da laicidade (ou secularidade) estatal enquanto delimitações fundamentais de nossa experiência político-jurídica.
O Estado brasileiro é laico e apresenta uma compreensão positiva da laicidade, a qual, em que pese impedir a adoção de uma religião oficial ou mesmo oficialmente preferencial, aceita o estabelecimento de relações colaborativas de interesse público. Da mesma forma, a liberdade religiosa e as liberdades que dela derivam são direitos devidamente consagrados no rol de direitos individuais da Constituição, a qual também assegura o respeito e a proteção às liturgias e aos templos ou locais de culto. Todos eles, sem distinção.
Por mais que seja evidente e inegável a origem religiosa (sobretudo cristã) de muitos dos direitos humanos que compõem nossa carta de direitos fundamentais, o Estado, porque laico, não pode privilegiar em seus processos políticos de produção normativa as confissões que lhe forneceram esse arcabouço.
Em outras palavras, a origem religiosa de alguns dos marcos constitucionais não obriga o Estado secular a promover nenhum tipo de retribuição preferencial a nenhuma fé ou instituição religiosa.
Da mesma forma, o Estado, porque laico, deve se resguardar, por meio dos elementos jurídicos e políticos de sua própria contenção (isto é, seja na disputa política parlamentar, seja na atuação de controle de constitucionalidade, seja na própria dinâmica dos movimentos sociais), de vir a ser apropriado por pautas eminentemente confessionais em suas diversas instâncias de normatividade. Uma das formas mais ardilosas, mas ao mesmo tempo mais efetivas, de corrosão da liberdade religiosa é justamente a de infiltração de padrões de religiosidade confessional ou de uma moralidade religiosa específica em normas de direito público e de interesse público —infiltração essa na maioria das vezes encoberta por discursos de legitimação a partir da evocação de elementos supostamente tradicionais de uma religião hegemônica.
O direito de liberdade de religião ou crença pressupõe não só a possibilidade de viver plenamente de acordo com a sua crença, promovendo-a em suas diversas potencialidades, não sendo tolhido por conta de sua fé. Da mesma forma e com igual ênfase, também assegura um modo de vida não confessional, de modo que aqueles que não desejam professar nenhuma fé não se vejam limitados por valores religiosos embutidos em normas de direito público.
Ainda que os espaços de representação política, num Estado democrático e liberal, devam ser ocupados por representantes de todos os segmentos sociais, garantindo que a complexidade característica do povo esteja reproduzida nos Parlamentos, a promoção de valores religiosos hegemônicos em normas que regulam o interesse público, de aplicação geral, impessoal e irrestrita, em detrimento de experiências religiosas minoritárias e de opções não religiosas de vida, é uma notória, ainda que às vezes sutil, forma de desequilíbrio e, por isso, de desrespeito à liberdade religiosa.
TENDÊNCIAS / DEBATES
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