No mês passado, o Museu Britânico divulgou um vídeo estrelado por um de seus mais célebres curadores, o professor Irving Finkel, especialista em textos cuneiformes da antiga Mesopotâmia. No vídeo, ele trata das descobertas sobre um dos temas mais intrigantes da literatura antiga, o relato do dilúvio.
Não demorou muito para que, nas redes sociais e nos jornais, se começasse a falar do deciframento de um mapa que apontaria onde atracou a arca de Noé, do relato bíblico do Gênesis. É um fenômeno conhecido: há uma obsessão por encontrar uma prova definitiva do dilúvio e praticamente todo ano uma expedição arqueológica anuncia uma pista extraordinária, que acaba se revelando ilusória.
Na verdade, o vídeo do Museu apenas resumiu os achados que Finkel havia publicado dez anos antes, no livro “The Ark Before Noah” (literalmente, “A Arca Antes de Noé”). São duas descobertas extraordinárias, mas têm pouco a ver com Noé.
A primeira descoberta ocorreu em 1985, quando o filho de um militar britânico que havia servido no Iraque levou ao museu um tablete de argila com inscrições cuneiformes. Ao ler as primeiras linhas, Finkel percebeu que estava diante de algo excepcional. Elas mencionavam Atra-hasis, o herói que sobreviveu ao dilúvio em um dos textos mesopotâmicos que descrevem o episódio. O tablete continha as instruções detalhadas que o deus Ea deu a Atra-hasis para a construção da arca.
A surpresa é que o grande barco que serviria para salvar todas as espécies vivas tinha um formato redondo. Sua fabricação lembra aquela de um cesto de vime com uma base circular, com hastes verticais nas quais são trançadas as tiras de palha. A informação é excepcional, pois no relato mesopotâmico mais famoso do dilúvio, o da Epopeia de Gilgamesh, a arca é quadrada. Uma arca redonda pode parecer estranha, mas barcos circulares foram comuns nos rios da Mesopotâmia desde a Antiguidade até recentemente.
A segunda descoberta também foi um golpe de sorte. O Museu Britânico possui um tablete de argila com o desenho de um mapa. É o primeiro mapa-múndi de que temos notícia, datado do século 6º a.C.
Nele, o mundo conhecido é representado no interior de um círculo formado por um rio de “águas amargas”, segundo a tradução literal, com a Babilônia no centro. Fora do círculo, há o universo distante ou fabuloso, representado na forma de oito montanhas. O mapa já era conhecido há mais de um século e estava incompleto. Mas, em 1995, uma estagiária encontrou um fragmento entre os milhares de cacos nos depósitos do Museu.
O fragmento permitiu que Finkel completasse uma das montanhas do mapa, encaixando-o acima da região identificada como Urartu, situada ao norte da Babilônia. Assim, a montanha poderia ser identificada como o Monte Ararat, na atual Turquia. O interessante é que o texto no verso do mapa-múndi menciona Uta-napishtim, o que vincula o mapa ao nome do sobrevivente do dilúvio na versão da Epopeia de Gilgamesh. Na interpretação de Finkel, o novo fragmento indicaria o local onde a arca do dilúvio mesopotâmico teria atracado.
E qual a relação de tudo isso com o dilúvio bíblico de Noé? É uma relação apenas indireta. As duas descobertas reforçam o consenso entre os especialistas de que a narrativa do dilúvio do Gênesis foi criada a partir dos textos mesopotâmicos no exílio babilônico ou mais tarde.
O “tablete da arca” é datado de cerca de 1800 a.C., mesma época em que foi escrito o mito de Atra-hasis. Portanto, são textos que precedem em séculos à escrita desse trecho da Bíblia hebraica. Já o mapa-múndi mostra que os redatores bíblicos, ao escreverem que a arca foi parar nas montanhas de Ararat, criaram suas histórias aproveitando detalhes geográficos do texto babilônico.
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