É, de longe, o lance mais emblemático da história do futebol brasileiro. Após uma série de plásticas fintas no campo de defesa executadas por Clodoaldo, Rivellino lança Jairzinho na ponta esquerda. A bola é passada a Pelé, que, a dois passos da meia-lua, vira levemente a cabeça para perceber a chegada de Carlos Alberto, pela direita, para fechar o placar da final da Copa do Mundo de 1970: Brasil 4 x 1 Itália.
Poucos lembram que a jogada começou com um carrinho de Everaldo para recuperar a bola –com enorme ajuda de Tostão, que fez a pressão inicial e controlou a posse após o bote certeiro do lateral esquerdo. Ou que ele participou, com passes simples, do segundo gol, de Gerson, e do terceiro, de Jairzinho.
Se os lances do Brasil de 1970 eram recorrentemente iniciados com uma ação descomplicada do gaúcho, também os textos a seu respeito têm uma fórmula batida. Apontam-no como o herói discreto do time que é aclamado como o maior da história, com Pelé, Gerson, Tostão, Jairzinho, Rivellino, Carlos Alberto, Clodoaldo… Mesmo a dupla de zaga, formada pelos viris Brito e Piazza, é recordada com maior frequência, pelo arranjo tático do técnico Zagallo, que recuou o volante Piazza para a defesa.
Everaldo, em geral, é citado com algum adjetivo na linha semântica do esquecido, do quase anônimo. Mesmo quando partiu, em 27 de outubro de 1974, há 50 anos, apenas quatro após a conquista do tri no México, o noticiário foi relativamente frio, com detalhes sobre o acidente automobilístico ao qual não resistiu –também morreram sua mulher, Cleci, uma de suas filhas, Deise, e sua irmã, Romilda; outra filha, Denise, então com seis anos, sobreviveu.
“O Dodge Dart aproximava-se velozmente de Porto Alegre. Vinha a uns 140 km por hora pela BR-290 e já tinha atingido o município de Guaíba; estava a apenas 45 km de seu destino. O caminhão Mercedes-Benz, uma enorme jamanta, tinha acabado de ser abastecido de óleo Diesel, num posto. E seu motorista, certamente com pressa de voltar para casa, reapareceu de repente na pista da BR-290, sem fazer a devida sinalização”, relatou a Folha, em sua edição de 29 de outubro. “Houve o choque, ao mesmo tempo inevitável e espetacular.”
Surgiram diferentes versões sobre a colisão, que envolveu a imprudência de ao menos um dos motoristas, provavelmente dos dois, em uma época no qual o uso do cinto de segurança era raro. O certo é que ele interrompeu a trajetória de Everaldo, àquela altura já mais política do que esportiva.
Quando bateu o carro na BR-290, o porto-alegrense voltava de Cachoeira do Sul, onde participara de um jogo festivo –no dia do acidente, o Grêmio enfrentou o Caxias, pelo Campeonato Gaúcho, e ele não foi convocado nem para o banco de reservas. No interior, esteve em comícios e deu sequência à sua campanha para deputado estadual pela Arena (Aliança Renovadora Nacional), o partido da ditadura militar.
“Ultimamente, Everaldo era muito mais um político do que um jogador de futebol”, observou a Folha, no texto “A morte de um dos nossos tricampeões”.
Essa vida pública foi catapultada pelo reconhecimento obtido na Copa de 1970. Antes mesmo do tri, às vésperas do embarque para o México, os jogadores da seleção tiveram encontro com o presidente da República, o gaúcho e gremista Emílio Garrastazu Médici, no Palácio Guanabara. Segundo Roberto Sander, autor de “1970 – Enquanto o Brasil Conquistava o Tri”, o lateral “recebeu atenção especial”, afinal era o único representante do Rio Grande do Sul em um elenco que, exceção feita a ele, só tinha atletas de clubes paulistas, cariocas e mineiros.
Everaldo não embarcou como titular. O dono da posição era o habilidoso e jovem Marco Antônio, do Fluminense, de apenas 19 anos, mas havia duas questões. O garoto era um lateral ofensivo em um time com setecentos camisas 10, no qual provavelmente faria mais sentido –e fez– um jogador que priorizasse a marcação, não o apoio ao ataque. E era isso, um garoto, que dava sinais de não estar mentalmente pronto para uma Copa do Mundo.
De acordo com relato de Tostão, o adolescente “passou a semana toda queixando-se de dores nas pernas” e dizia apenas que “talvez pudesse jogar” a partida de estreia, contra a Tchecoslováquia. “O médico Lídio Toledo percebeu, os jogadores também, o medo do lateral, e foi escalado o saudoso Everaldo: jogador aplicado, marcador, gaúcho macho”, contou o centroavante de 1970 no livro “Tostão – Lembranças, Opiniões, Reflexões sobre Futebol”.
Estava aberto o caminho para o lateral do Grêmio, titular em cinco das seis partidas da campanha e peça importante na engrenagem armada por Zagallo. Sua função, ao lado de uma porção de atletas capazes de fazer o muito difícil, era fazer o fácil.
“Era do tipo firme, que desarmava, passava e fazia um jogo competente. Sem grandes brilhos, mas extremamente eficiente. Ele jogou todos os jogos com a mesma intensidade, do mesmo jeito. Não teve um momento em que se destacou demais, nem de menos”, recordou Tostão, hoje colunista da Folha, à reportagem.
“Acho que o jeito dele fora de campo tinha a ver com o jeito dele de jogar: uma pessoa muito compenetrada, muito segura, muito prática, de pouca conversa, sempre firme, com seriedade. Foi importante para a seleção, ainda mais que o outro lateral, o Carlos Alberto, apoiava muito o ataque. Então, o ajuste aconteceu naturalmente”, acrescentou.
Ainda que sem o destaque dos craques da seleção, Everaldo teve reconhecimento por seu trabalho no tri, especialmente no Rio Grande do Sul. Um dos agrados que recebeu foi um carro, oferecido por uma concessionária, um Dodge Dart destruído há 50 anos. Outro foi a inclusão de uma estrela dourada na bandeira do Grêmio, homenagem ao primeiro jogador campeão do mundo como representante de um clube gaúcho.
Consolidado como um atleta importante e reconhecido como um marcador leal, recebeu em junho de 1972 o Prêmio Belfort Duarte, entregue pelo Conselho Nacional de Desportos a jogadores sem expulsão em dez anos, com ao menos 200 partidas. Então, três meses depois, irritado com a marcação de um pênalti para o Cruzeiro, deu um soco na cara do árbitro José Faville Neto –nem esperou o cartão vermelho; apenas caminhou até o vestiário.
Foi, na prática, o seu último ato como jogador. Suspenso por um ano, encontrou no retorno a lateral esquerda do Grêmio dominada por Jorge Tabajara. Então, deu-se por satisfeito e começou a perseguir uma carreira política.
Já na volta do México, ele agradecera efusivamente a Médici pela lei que reservava parcela do dinheiro da loteria federal aos tricampeões. “O que vai me dar a vida mais regular será esse prêmio do presidente, ou seja, os 9% da loteria até a minha morte”, disse, em entrevista à Rádio Guaíba. “E eu acho que até a minha morte tem bastante tempo ainda.”
Não tinha.
Ficaram as memórias, como as da filha Denise, hoje com 56 anos, sempre saudosa do pai sambista, fã de Lupicínio Rodrigues. Ficou a estrela na bandeira do Grêmio, time ao qual Everaldo chegou menino, aos 13 anos, e pelo qual foi tricampeão gaúcho, em 1966, 1967 e 1968. E ficou a marca no maior time de futebol da história.
“Ontem o moço exagerou”, relatou a Folha no dia seguinte ao 4 a 1 sobre a Itália. “Reuniu tudo aquilo que conhece de futebol e fez uma exibição particular, sem esquecer um momento a equipe. Duro como aço, leal como poucos, sério e conciso na hora crítica, enfeitou seu jogo com discretas filigranas.”
Discretas filigranas. Até as filigranas de Everaldo eram discretas.
“Everaldo. Everaldíssimo.”
You must be logged in to post a comment Login