Aos 43 anos, Adriano Leite Ribeiro ainda é um dos personagens mais magnéticos do futebol brasileiro, mas suas explicações para o abreviamento de sua carreira, embora simples, nem sempre são aceitas.
“Meu Medo Maior“, seu livro de memórias (editora Planeta, R$ 99), escrito em parceria com Ulisses Neto, pode ser a última chance de entender um homem tão amável quanto avesso a se abrir.
Em 2000, aos 18 anos, o centroavante alto, canhoto e ainda reserva, foi convocado por Emerson Leão para as Eliminatórias da Copa, surpreendendo inclusive os torcedores do Flamengo. Logo Adriano foi levado ao futebol italiano, onde explodiu, atuando por Parma e Inter de Milão. O ápice europeu durou quatro anos, devido ao luto pelo pai e a um quadro de profunda depressão, razões que o trouxeram de volta ao Brasil, com a camisa do São Paulo.
Pode-se dizer que Adriano deixou de ser um profissional logo após o título brasileiro do Flamengo em 2009, quando perdeu a convocação para a Copa de 2010. Em 2011, participou com apenas um gol do título brasileiro conquistado pelo Corinthians, mas mesmo essa passagem já tinha ares de distração: tinha dinheiro e patrocínios suficientes e só queria estar de volta à favela da Vila Cruzeiro, na zona norte do Rio, rodeado por amigos, tomando cerveja e comendo lanche do McDonald’s no único lugar em que sempre se sente em casa.
A partir daí, cada passo rumo ao abandono precoce da carreira –em nome do desfrute de uma vida discretamente dedicada aos prazeres mundanos– parece ter gerado uma paixão pública ainda maior. Hoje é o cativante Didico, não só para os íntimos, mas também para os fãs.
A sinceridade com que nunca se habituou ao jet set –sem nem sequer abraçar as redes sociais como o influencer que poderia ser– fez dele a encarnação do brasileiro que, tendo conquistado o mundo, não se esqueceu das origens, o famoso “gente como a gente”. É um rumo totalmente diferente de Neymar (que só é citado no livro uma vez, como adversário, em 2009), num dos contrastes mais incríveis do futebol brasileiro: de um lado, Neymar, o garoto perfeccionista que nunca chegou atrasado a um treino e que sempre despertou amor e ódio; do outro, o meninão que sempre teve problemas com os deveres do futebol profissional e que, ao se livrar cedo da carreira, se tornou ainda mais querido.
O fato de que Adriano preferiu lançar um livro de memórias em vez de um documentário chapa-branca também sublinha a diferença de gerações. Um produto audiovisual teria sido capaz de nos recordar o brilhantismo de tudo o que Adriano fez nos campos brasileiros e europeus, mas talvez não tivesse captado sua alma. Dificilmente haveria imagens de arquivo suficientes para recontar a odisseia do menino que, aos 7 anos, foi convencido pela mãe, Rosilda, e pela avó Vanda a enfrentar a custosa aventura de entrar para a escolinha do Flamengo, do outro lado da cidade, escoltado pela avó e alimentado de pipoca e pão com açúcar. E a construção do personagem é fundamental para começar a digerir sua dramática opção de carreira.
Percebe-se uma enorme preocupação do jornalista Ulisses Neto (que assina como coautor) de captar a voz, as inflexões, as gírias e o ritmo da fala de Adriano. E, de fato, Ulisses tem bom ouvido: colaborou com o site The Players’ Tribune, plataforma que se celebrizou por produzir textos em primeira pessoa de atletas famosos, proporcionando aos tipicamente ariscos entrevistados um lugar seguro para suas versões.
“Nosso primeiro encontro foi em dezembro de 2020, num hotel na Barra. Fiquei esperando quatro horas até que ele descesse, para a Players Tribune. Ele gostou tanto do resultado que topou fazer a biografia. Foram inúmeros encontros e em quase todos eu tive que beber”, conta o jornalista, 41.
O tempo todo, a sensação é que estamos num quiosque na Barra da Tijuca, enquanto fãs, mulheres e cervejas se posicionam em torno do ex-atacante, que conta suas histórias e suas hesitações com prazer. Adriano não está a fim de fazer inimigos, nem se arvora a qualquer reflexão além do seu alcance. É até espantoso que as palavras “racismo” e “racista” não apareçam nas 502 páginas sobre um rapaz negro.
“Acho que há momentos no livro em que fica claro que Adriano sofreu agressões típicas do racismo”, diz Ulisses, por telefone, à Folha. “Mas não é um assunto que ele aborde, e meu papel era contar as memórias do jeito dele.”
Ao fim e ao cabo, o que o texto comunica, numa leitura absolutamente veloz e sedutora, é o enorme alívio do ex-jogador na relativa paz que alcançou depois de ter se livrado dos sonhos que, uma vez abraçados pelo menino, quase devoraram o homem. De certa maneira, Adriano reflete outro talento bom de copo do qual nos despedimos recentemente: o pianista Arthur Moreira Lima (1940-2024), que tomou rumos contrários aos que naturalmente se projetam, certo de que havia “outras coisas na vida” além de estudar, conforme disse ao jornal The New York Times em 1981.
Para o interessado em futebol, o livro lança luz sobre episódios famosos. Descreve deliciosamente sua versão da tarde em que, após um desentendimento com a então namorada Joana Machado, surgiu a lenda de que Adriano e seus colegas do Flamengo teriam amarrado a musculosa personal trainer numa árvore, e permite entender o acidente de moto que produziu uma queimadura de terceiro grau no calcanhar e tirou Adriano de jogos decisivos de 2009. Mas “Meu Medo Maior” não seria uma leitura tão recompensadora sem seu genuíno interesse em seu personagem, simples e complexo, e um formidável tempo para compreendê-lo.
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