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Ainda Estou Aqui: Texto atrasa a visão de cinema nacional – 20/02/2025 – Ilustrada

Ainda Estou Aqui: Texto atrasa a visão de cinema nacional - 20/02/2025 - Ilustrada

Rodrigo Cássio Oliveira

O crítico Raul Arthuso publicou na Folha um texto em que considera “Ainda Estou Aqui” o sintoma de um “cinema carente”, apesar do sucesso de público e crítica.

O autor revisita a ideia de que filmes alinhados ao padrão estético de premiações comerciais —Globo de Ouro, BAFTA, Oscar— são produtos de menor valor para os brasileiros. Seriam filmes “tipo exportação”, omissos à realidade do Brasil, pois adotam um ideal de competência técnica e convenções de dramaturgia genéricas e internacionais.

Quem conhece a história do pensamento sobre cinema no Brasil identifica nesse argumento as tinturas já desbotadas do levante nacionalista do cinema novo nos anos 1960. A busca por uma linguagem autêntica nacional exigia rompimento com os padrões de “qualidade cinematográfica” da era dos estúdios.

Grandes filmes nasceram desse desejo modernista por originalidade nacional, mas hoje o cinema brasileiro já soma três décadas de um modelo de produção diferente, que atravessou a globalização e tem diante de si os novos nacionalismos à direita.

A relação entre local e global mudou. Muitos “cinemas brasileiros” emergiram no período: tanto os sucessos de linguagem híbrida com a TV —tipo os da Globo Filmes— como os “novíssimos cinemas” inspirados pelo modernismo, estes sem grande adesão do público.

Alguns desses projetos se consolidaram, como os dos diretores que Arthuso vê como “artisticamente frescos”. Mas o que seu texto não menciona é que esse cinema também se certifica obsessivamente como um produto “tipo exportação”. Seu destino não é o Oscar, por certo, mas festivais nichados que o validam de maneira tão autocentrada quanto a Academia.

Mesmo atentos à realidade brasileira, os filmes que ecoam hoje o legado do modernismo poucas vezes dialogam com o grande público. No cinema novo a conexão com os espectadores do Brasil era sempre perseguida, ainda quando fracassava. Hoje, diferente dos anos 1960, a elite cultural do país, em que se incluem os cineastas, não mais está “em busca do povo brasileiro” —título de excelente livro de Marcelo Ridenti sobre o tema.

Assim, não faz sentido afirmar que apenas “Ainda Estou Aqui” tem uma sensibilidade voltada para o exterior. Ser chancelado por Berlim, Cannes ou Veneza não é ser menos “produto de exportação” do que ser chancelado pelo Oscar.

A discussão sobre a expressão do Brasil no cinema só faz sentido se considerarmos a linguagem dos filmes. Contudo, ao entrar nesse mérito, Arthuso descarta dramas universalistas que geram identificação com protagonistas fortes, como Eunice Paiva. Há uma rejeição por princípio do filme roteirizado, ambientado e encenado, como se a escolha de Walter Salles por um estilo classicista fosse defeito de origem.

Isso me lembra as críticas dos cinemanovistas a Walter Hugo Khouri, cuja predileção por temas morais e universais contrastava com a vocação mais sociológica do grupo.

Glauber Rocha respeitava Khouri como autor, mas o via como um artista equivocado: “seu cinema não pode nem deve ser a imagem de um artista moderno num lugar como o Brasil”, escreveu em “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro” (1963). Esse impulso normativo era próprio de Glauber Rocha, mas hoje, deslocado do seu tempo, soa antiquado.

“Ainda Estou Aqui” usa a verossimilhança do cinema clássico para mostrar os impactos da ditadura na vida de sua protagonista. A ditadura não é só um “pano de fundo”, pois está entranhada na construção física e psicológica de Eunice.

Como explica o teórico do cinema David Bordwell, o principal agente do filme narrativo classicista é o personagem. Que outro cinema, senão este, conseguiria comunicar tão bem para um público amplo os efeitos devastadores de um regime autoritário sobre a vida de alguém?

Longe de superficial e sem reflexão, o filme de Walter Salles se comunica em profundidade com o público. A cena de Fernanda Montenegro (Eunice idosa) em primeiro plano é das mais reflexivas que um drama do gênero poderia oferecer.

A jornada de Eunice poderia, sem dúvida, ilustrar o sofrimento de mulheres em regimes autoritários diversos. Mas dizer, por isso, que o filme não expõe a experiência social brasileira é querer renunciar à universalidade para contar nossa história. Por que deveríamos fazê-lo?

As críticas datadas a “Ainda Estou Aqui” ilustram a dificuldade do pensamento cinematográfico brasileiro em acertar as contas com o modernismo. Não se trata de cravar um juízo definitivo e encerrar o debate, mas de perguntar até que ponto ainda queremos ser modernos, e o que exatamente queremos com isso.



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