Se o ucraniano Volodimir Zelenski é um dos líderes com mais a temer após a vitória de Donald Trump nas eleições dos Estados Unidos, o alemão Olaf Scholz também tem motivos de preocupação. No comando da maior economia da Europa, parte crucial da Otan e aliada de primeira hora de Kiev, o primeiro-ministro corre o risco de ver a aliança militar ser enfraquecida pelo republicano e a Rússia ficar em posição fortalecida se Trump costurar um acordo favorável a Moscou no conflito.
É nesse contexto que Scholz diz à Folha que seu país jamais aceitará uma paz na Guerra da Ucrânia ditada pelos russos. “Provavelmente ninguém na Europa anseia tanto pela paz quanto os ucranianos“, diz o premiê social-democrata. “Mas devemos ter cuidado com soluções falsas que só contêm paz no nome. Paz sem liberdade se chama opressão, e paz sem justiça se chama ditadura.”
Em entrevista por e-mail concedida dias antes da sua chegada ao Brasil para a cúpula do G20 no Rio de Janeiro, Scholz falou ainda sobre o que espera das relações com os EUA sob Trump, comenta as discordâncias com o governo Lula nas questões geopolíticas atuais e defende a atuação de seu governo em relação à imigração e ao crescimento da extrema direita na Alemanha.
As perguntas foram enviadas antes do colapso da coalizão governista, abalada por cisões internas e pela condução de uma economia estagnada. O premiê chega ao Brasil fragilizado, enfrentando um voto de confiança no Parlamento em dezembro que deve dissolver o Legislativo e convocar novas eleições para fevereiro —e as pesquisas apontam que Scholz, no poder desde 2021, deve perder o cargo.
O G20 é um fórum que reúne países de posições muito diferentes como Rússia e Alemanha, China e Estados Unidos. Ainda é possível esperar que essas instâncias multilaterais contribuam para soluções políticas em um cenário tão polarizado? Quanto espaço de cooperação há entre adversários geopolíticos?
Justamente diante dos diversos desafios globais, é importante utilizar o G20 para promover um desenvolvimento justo e sustentável para todos os países do mundo. Temos de deixar claro que os membros do G20 representam mais de 80% da produção econômica global, 75% do comércio mundial e 60% da população mundial. Portanto, temos uma responsabilidade especial: as nossas decisões podem ser um caminho a seguir para todos.
O Brasil também atende a essa exigência na Presidência do G20 com uma agenda clara. Ela visa a reduzir a desigualdade e a pobreza, promover a transição energética e o financiamento climático e proporcionar um impulso importante à reforma da governança global. Apoio plenamente estas prioridades do presidente Lula. Elas são fundamentais para a prosperidade global e para a nossa cooperação em todos os continentes.
Na cúpula em Déli, ao incluir a União Africana, reforçamos o papel do Sul Global [termo para se referir a países em desenvolvimento] no G20 e queremos também expandir ainda mais esta cooperação no Rio. Diante disso tudo algo está claro para mim: enquanto a Rússia, como membro do G20, não terminar esta guerra contra a Ucrânia que viola o direito internacional e continuar a ferir os princípios da Carta das Nações Unidas, não há fundamento para uma parceria baseada em confiança e cooperação dentro do bloco.
O senhor encontrou o presidente Lula em reuniões bilaterais em duas ocasiões neste mandato. Desde então, a posição de Brasília crítica às ações de Israel, aliado próximo de Berlim, se intensificou. Gostaria de que o presidente Lula tivesse outra visão em relação ao conflito no Oriente Médio?
Em 7 de outubro de 2023, os terroristas do Hamas assassinaram brutalmente mais de 1.200 israelenses. Centenas de outros foram raptados para a Faixa de Gaza. Esse foi um ataque hediondo que violou todas as regras e princípios da humanidade. A posição da Alemanha é clara. Israel tem o direito de se defender. Isso significa que Israel também deve ter o direito de impedir que o Hamas continue a perpetrar esse tipo de terror.
Entretanto, da mesma forma está claro que as regras do direito internacional também se aplicam a Israel. O sofrimento humano em Gaza é enorme. Um acordo sobre um cessar-fogo e a libertação dos reféns israelenses que estão em cativeiro há mais de um ano é urgentemente necessário. Um processo político confiável que leve a uma solução negociada de dois Estados é essencial para um fim sustentável do conflito —concordamos com o governo brasileiro nesse ponto.
Mais de um ano após os ataques de 7 de outubro de 2023, Israel está cada vez mais isolado no cenário internacional, com países como o Brasil e até a França pedindo o fim do envio de armas ao governo Netanyahu. Como vê essa questão? Existe uma discussão sobre reavaliar o fornecimento de armas da Alemanha para Tel Aviv?
Enfatizo mais uma vez que Israel tem o direito de se defender. Ao fazer isso, nossos parceiros israelenses podem contar com a solidariedade da Alemanha. Isso também inclui garantir a capacidade de defesa de Israel, por exemplo, fornecendo armas e equipamento militar. Em cada caso individual, isso é feito após avaliação cuidadosa da situação [por parte de Berlim].
Ao mesmo tempo, reconhecemos as vítimas de todos os lados e nos solidarizamos com elas —tanto em Israel quanto em Gaza. É de fundamental importância para o governo alemão que mais ajuda humanitária chegue à Faixa de Gaza, que as normas do direito internacional sejam observadas e que a perspectiva da solução de dois Estados seja mantida.
Um atentado cometido em agosto por um refugiado chocou a população alemã, e logo depois o partido de extrema direita AfD obteve resultados importantes em eleições regionais com uma pauta anti-imigração. A coalizão liderada pelo sr. aprovou no Parlamento medidas que devem facilitar a deportação de imigrantes. Na sua visão, era a resposta necessária a este cenário?
Não se trata de uma questão de imigrantes por si só. Queremos abrir as rotas de migração legal e, ao mesmo tempo, impedir a migração irregular. Cada vez mais países da Europa dependem da imigração de novos trabalhadores, e isso é particularmente verdadeiro para a Alemanha. E existe o direito fundamental ao asilo, que é importante para nós.
Ao mesmo tempo, isso deve ficar claro: quem não tem o direito de permanecer na Alemanha precisa retornar ao seu país de origem. O governo federal tirou suas conclusões do ataque em Solingen e apresentou um pacote de segurança abrangente. Essa é a resposta às ameaças atuais. A ideia é facilitar a deportação de pessoas que são obrigadas a deixar o país e ajudar as autoridades na luta contra o islamismo violento. O objetivo é, portanto, fortalecer a segurança na Alemanha.
Economistas apontam que, para países em crise demográfica como a Alemanha, a imigração representa uma oportunidade de crescimento econômico. Como vê essa questão? A Alemanha não tem mais interesse em ser um país de imigrantes?
Muito pelo contrário. A Alemanha é um país de imigração com provavelmente uma das regulamentações mais liberais do mundo. Isso se deve ao fato de querer e precisar ser atraente para trabalhadores qualificados de todo o mundo. É por isso que adotamos a Lei de Imigração de Trabalhadores Qualificados e criamos novas rotas de acesso. Os trabalhadores qualificados do exterior agora podem trabalhar na Alemanha mais rapidamente e com menos burocracia. Esse tipo de imigração nada tem a ver com a imigração irregular.
Sobre a AfD, que é oficialmente monitorada pelo serviço de inteligência interno da Alemanha, há uma discussão sobre um eventual banimento do partido. O sr. considera uma medida razoável? Qual perigo a AfD representa para a democracia alemã?
O instrumento da proibição de partidos é estabelecido em nossa Constituição como um último recurso, e por um bom motivo. Uma medida como essa teria de ser cuidadosamente estudada. As autoridades competentes devem coletar informações e avaliar se um partido é extremista e anticonstitucional por completo ou em partes.
Atualmente, não está na agenda do governo federal fazer um pedido nesse sentido ao Tribunal Constitucional Federal [a Suprema Corte da Alemanha]. Para nós, é importante lidar com quaisquer forças extremistas, antes de mais nada, politicamente. Essa é a tarefa de todos os partidos democráticos.
Como o sr. espera que a vitória de Donald Trump impacte as relações entre Alemanha e Estados Unidos? As falas dele sobre a Otan podem fazer com que os países europeus invistam em uma arquitetura de segurança independente?
A Alemanha e os EUA estão profundamente conectados —política e economicamente, mas também em nível humano. Juntos, sempre trabalhamos com sucesso pela paz e estabilidade no mundo. Queremos manter essa cooperação, mesmo com o recém-eleito presidente dos EUA.
É claro que isso inclui a questão da segurança na Europa. Essa é outra área na qual queremos dar continuidade à cooperação bem-sucedida das últimas décadas. Não podemos nos esquecer de que, juntos, conseguimos manter a paz na Europa por muitos anos. O ataque da Rússia à Ucrânia mudou isso de forma brutal.
Isso força os países europeus a intensificar seus esforços de defesa, e é por isso que já aumentamos significativamente nosso investimento em segurança e defesa nos últimos anos. Em 2024, pela primeira vez, teremos gasto 2% do nosso PIB nessa área. Continuaremos a fazer isso, não apenas para compartilhar os encargos de defesa entre nós e os EUA, mas também para nossa própria segurança.
Relatos da Guerra da Ucrânia apontam que o exército de Kiev vem perdendo terreno, e uma vitória pela força parece distante. Quando será o momento de conversar com a Rússia para chegar a um fim negociado da guerra? Que condições o sr. acredita serem necessárias?
Provavelmente ninguém na Europa anseia tanto pela paz quanto os ucranianos. Mas devemos ter cuidado com soluções falsas que só contêm paz no nome. Paz sem liberdade se chama opressão, e paz sem justiça se chama ditadura.
É por isso que apoiamos as exigências da Ucrânia por uma paz justa que respeite os princípios da Carta das Nações Unidas e os de integridade territorial e independência. Para mim, isso quer dizer que apoiaremos a Ucrânia em seu direito à autodefesa —pelo tempo que for necessário. Putin precisa entender que tentar ganhar tempo não funcionará. Não desistiremos de nosso apoio à Ucrânia.
Com base nisso, estamos explorando conjuntamente todas as possibilidades de alcançar uma paz justa e duradoura para a Ucrânia. Estamos de acordo com Kiev no que tange à realização de outra conferência após a primeira conferência de paz na Suíça, em junho. A Rússia também deveria participar dela.
Só podemos alcançar a paz na Ucrânia com base no direito internacional, e isso exigirá enormes esforços. No entanto, a tentativa de alcançar uma paz justa e duradoura para a Ucrânia continua sendo o princípio que orienta nossa ação conjunta. Certamente não aceitaremos uma paz ditada pela Rússia.
RAIO-X | OLAF SCHOLZ, 66
Nascido em 1958 em Osnabrück, na então Alemanha Ocidental, é formado em direito pela Universidade de Hamburgo e filiado ao SPD (Partido Social-Democrata da Alemanha) desde 1975. Foi membro do Parlamento alemão por 13 anos e chefiou o Ministério do Trabalho e Questões Sociais de 2007 a 2009. Prefeito de Hamburgo de 2011 a 2018, assumiu posições no topo do SPD e foi Ministro das Finanças e vice-chanceler do governo Angela Merkel de 2018 a 2021. É o primeiro-ministro da Alemanha desde dezembro de 2021.
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