Aprovação saiu no último dia 24. Ele passou na ordem antes de finalizar o curso: ‘espero inspirar mais indígenas’.
Oitavo filho de uma família de 11 irmãos, nascido em um dos municípios mais isolados do Acre e um sobrevivente e persistente diante de preconceitos ultrapassados, mas ainda fortes na sociedade, Heliton Kaxinawá ainda está em êxtase com a aprovação na Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Acre (OAB-AC) divulgada no último dia 24.
Aos 23 anos e ainda cursando o 9º período de direito, ele diz que a aprovação é a realização de um sonho e que agora pretende ser inspiração para que outros jovens indígenas ocupem seus espaços.
Mas, até chegar a essa conquista, foi um longo caminho percorrido, começando por ter nascido em um dos municípios mais isolados do Acre, que tem pouco mais de 8,6 mil habitantes.
A Terra Indígena Kaxinawá do Rio Jordão tem 87 mil hectares e uma cerca de 1.470 indígenas, também conhecidos como Huni Kuin que ocupam Jordão e Marechal Thaumaturgo.
“Nasci no município de Jordão, no baixo Rio Tarauacá, em um local conhecido, ainda hoje, como igarapé dos índios, porque, por residirmos lá, os moradores próximos acabaram denominando assim aquele lugar. Morei lá por um tempo e lembro que houve uma reunião de alguns moradores para tentar nos expulsar de lá porque éramos indígenas e não poderíamos morar naquele local. Após isso, fomos morar próximos à cidade Jordão, uma comunidade indígena, e de lá me deslocava para estudar na escola pública e foi lá que cresci e me criei até os 18 anos”, conta.
Movido pelo sonho
Porém, ao se formar no ensino médio, Heliton, pensando em focar mais em seus estudos e com o sonho do curso superior, decidiu morar em Rio Branco – capital acreana.
“O que me moveu para Rio Brano foi o sonho do nível superior e o gosto pelo direito nasceu em mim por uma série de questões. Uma delas foi a injustiça social que sofri, principalmente no ensino fundamental, porque era um período que eu não conseguia me encaixar em nenhum grupo. Nos trabalhos escolares eu era a única criança a não me integrar em um grupo, fazia os trabalhos sozinhos”, relembra.
Isso fez com que o estudante se tornasse, segundo ele, uma pessoa retraída e que tinha vergonha de fazer coisas que parecem simples, como, por exemplo, fazer compras.
“Eu era uma pessoa que tinha vergonha de falar, de ir ao supermercado, era uma pessoa presa em mim mesma. Só fui mudar, quando cheguei em Rio Branco e comecei a ter acesso à internet, livros e comecei a ter conhecimento. Isso tudo tem me libertado a cada dia, porque tenho aprendido a me desenvolver, falar, conversar e tive a oportunidade de cursar direito.”
Heliton faz o curso em uma faculdade particular de Rio Branco através da bolsa do Fies. Além do preconceito que teve que enfrentar, as dificuldades financeiras também pesaram nessa caminhada.
“Lembro que ao sair de casa e comunicar isso aos meus familiares, dizendo que eu iria lutar pelos meus sonhos, meus pais, quase que em lágrimas, falavam que não teriam condições de me ajudar. Me lembro que durante muito tempo, antes de eu conseguir meu primeiro estágio, ia para a faculdade com fome. Às vezes eu conseguia a passagem para ir de ônibus, mas, muitas vezes, voltava andando porque o dinheiro não dava para a volta”, conta emocionado.
Mesmo com tanta dificuldade, ele tinha o foco e determinação de conseguir chegar ao objetivo que o fez sair de casa: se formar. “Fui me dedicando, dando o meu melhor, o máximo de mim para mostrar que indígena também pode, aprende e consegue. E hoje, ao conseguir essa pequena conquista, que pra mim é grande, gigante, enorme, que era quase inimaginável há alguns anos, eu me sinto eufórico, alegre. Assim que saiu o resultado eu desabei, comecei a chorar, é indescritível o sentimento de felicidade e alegria, mas me sinto triste por saber que sou um dos poucos a conseguir”, pontua.
Heliton quando ainda morava em Jordão, no interior do Acre — Foto: Arquivo pessoal
Inspiração para jovens
Como ainda não terminou o curso, Heliton só deve pegar a carteira da OAB no ano que vem, mas, enquanto isso, ele segue se dedicando e correndo atrás do que sempre sonhou. Para ele, o que vale é o clichê de que a educação salva vidas e muda rumos.
E, ao se tornar advogado, ele não pretende esquecer suas raízes e nem seu povo. Pelo contrário, ele promete trabalhar pela manutenção dos direitos dos povos tradicionais e honrar a memória de seus ancestrais.
“Assim que formar, vou pegar minha carteira e buscar o que vim fazer: ser advogado, exercer a defesa do meu povo, ser um representante do meu povo. O que espero com isso é que cada vez mais os indígenas se sintam inspirados e mais jovens consigam o que eu consegui. Quero que me olhem e vejam que um parente que chegou na capital semianalfabeto, que falava mal, escrevia mal, alcançou o objetivo”, finaliza.
Amazônia Que Eu Quero
O projeto Amazônia Que Eu Quero está na sua segunda temporada, que tem como tema “Educar para desenvolver e proteger”. Após a primeira temporada, ‘Caminhos para a democracia”,- o tema escolhido para 2023 remete aos impactos do déficit de educação no Norte do Brasil e tem como objetivo chamar a atenção do poder público através de propostas para incentivar a implementação de projetos e lei que acessibilizem não só a educação, mas a conectividade e o turismo na região.
O projeto tem como premissa a discussão de assuntos fundamentais para a realidade amazônica e que têm sido deixados em segundo plano por décadas, ao mesmo tempo que propõe ampliar a capacidade de análise da população da região norte ao levantar informações da gestão pública e apontar caminhos a partir da discussão entre especialistas e a sociedade civil, despertando o senso crítico e o voto consciente dos Amazônidas.
A partir dos fóruns, câmaras de debates entre especialistas foram criadas com objetivo de criar propostas para a resolução dos problemas apresentados para cada estado da região norte. Ao fim da temporada, 50 propostas foram criadas e compuseram um caderno que será entregue a deputados, senadores e governadores dos estados da região além do presidente da república em Brasília.