POLÍTICA
As lições da história | VEJA
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Arthur Pirino
“Reprimir notícias falsas, rumores sediciosos, identificar seus autores!”, dizia uma proclamação do rei Henrique VII, da Inglaterra, em 1487. Soa familiar? Pois é. Quando observo o pânico atual, em torno da “desinformação”, de todos os incríveis riscos rondando os “discursos de ódio” e “desestabilizadores”, me lembro de quanto estamos ficando velhos. No século seguinte, a Inglaterra criou um sofisticado sistema de censura aos livros, inclusive terceirizando o trabalho à guilda de editores e impressores. O pânico vinha da prensa, daquela invenção diabólica de Gutenberg, que infestou a Europa de livros e incendiou a cabeça das pessoas. Daí a necessidade de mandar proibir “certos livros e tratados heréticos, impressos diariamente por pessoas escandalosas, maliciosas, cismáticas”. Na prática, dar conta da “desordem informacional”, 500 anos atrás. O que só me faz lembrar daquela frase famosa de Talleyrand: nada esquecemos, nada aprendemos.
O pânico tomou conta da Igreja. A Reforma e suas infinitas seitas eram o “extremismo” a ser extirpado, para que a Europa fosse “recivilizada”. Leão X tomou como alvo a “dupla verdade”. A tese de que uma ideia qualquer poderia ser falsa, segundo a Igreja, e ainda assim verdadeira, segundo alguma filosofia. Seu maior medo: os filósofos, com sua lógica infernal, e os poetas, com seu encantamento. Era preciso limpar, literalmente, a Europa “infectada” pelas novas ideias. A igreja estava certa. Só que perdeu. No fim das contas, quem ganhou o jogo foi a heresia. E a modernidade, filha dessa vitória. Não por acaso, o primeiro livro moderno fazendo uma clara defesa da tolerância, de Sebastian Castellio, em 1554, chama-se “sobre os hereges”. Ele e sua pergunta prosaica: “quem professa uma doutrina não será, ele mesmo, um herege para todas as demais doutrinas?”. Cem anos depois, John Milton escreveria sua longa carta ao Parlamento inglês, a Areopagítica, pedindo o fim da censura aos livros. Ele e sua ideia terrível de que a verdade havia se partido em mil pedaços, que só seria refeita novamente no dia do juízo. E que seria um erro dar a qualquer um o poder da censura prévia. John Milton era um poeta. A igreja tinha razão.
Estas coisas me vêm à cabeça quando leio sobre o brain rot, a palavra do ano escolhida pelo Dicionário Oxford. A expressão é dura, significaria algo como “cérebro apodrecido”, e foi usada pela primeira vez por Henry Thoreau, escrevendo em alguma noite fria no Lago Walden. Um sujeito, diga-se de passagem, que não queria regular a vida de ninguém. Seu significado é duplo: um deles é a sobrecarga de informação. A civilização do excesso. De imagens, de barulho, de “idiotas da aldeia metidos a sábios universais”, na frase triste de Umberto Eco. O segundo é o impacto que tudo isso produz na nossa forma de pensar. Vai aí o aumento da solidão, em especial dos muito jovens. A captura da atenção pelas bugigangas digitais. E a dispersão, que faz nossos alunos terem dificuldade em ler um livro ou mesmo prestar atenção.
“O país aceitou uma estranha forma de democracia de tutela”
É evidente que a internet e as redes produziram um estrago muito particular em nossa cultura. É assim, cá entre nós, a cada nova revolução tecnológica no mundo da informação. A cada ciclo, o pânico. O reconhecimento de que há ganhos evidentes, mas a sensação de que o mundo saiu do controle. Foi assim com a televisão, a “cultura de massas”, a “civilização do espetáculo” e sua frivolidade, tão bem descrita no livro melancólico de Vargas Llosa. E imagino que isso deve ter sido ainda pior em algum momento do século XVI, quando a guerra de religião literalmente tomou conta da Europa. A grande “insanidade” que levou tanta gente para a fogueira. Hoje não queimamos ninguém. Mas o brain rot está aí, firme e forte. A ideia que sempre nos assombrou, mas que agora ganhou uma palavra para ser dita.
A obsessão de nossa época não é a censura dos livros. É o controle das redes. O desejo prosaico de livrar o mundo da infecção das big techs e seus algoritmos “sediciosos”. É precisamente essa discussão, que diz respeito a direitos fundamentais em nossa democracia, que vem sendo decidida, por estas semanas, pelo Supremo. O ministro Dias Toffoli deu seu longo voto listando doze categorias de riscos ou delitos que devem servir de base para que as plataformas, elas mesmas, assumam a responsabilidade jurídica pela censura. Critérios definidos pelo Estado, censura feita pela nossa moderna guilda de editores. Dias atrás, o ministro disse que “um direito individual não pode funcionar como salvaguarda para condutas ilícitas”. E na sequência lascou: “Podemos entender que aquilo que aquele PM fez na ponte é liberdade de expressão?”. Ele se referia àquele soldado que empurrou uma pessoa de uma ponte, em São Paulo, e a questão me pareceu inteiramente nonsense.
Fiz um experimento. Perguntei à minha IA se um dito como esse do ministro seria banido das redes, pelas plataformas, se as novas regras criadas pelo próprio ministro para o Marco Civil da Internet já estivessem em operação. Resposta da IA: “Provavelmente sim”. A frase bateria em três categorias: “Incitação à violência e desinformação sobre ações de autoridades”, e logo um risco às instituições. “Incitação contra grupo vulnerável”, que podia ser tanto o do sujeito jogado, como o dos soldados. Ou podia simplesmente ser vista como fake news bastante ofensivas para quem defende a liberdade de expressão. Me chamou a atenção que a resposta veio recheada de “depende do contexto”, “depende da análise”, “das notificações”. Em resumo: um de nossos direitos essenciais migrou para o mundo do “depende”. No final, perguntei se a frase seria banida se tivéssemos algo como a Primeira Emenda à Constituição americana. Resposta rápida: “Não”. Mas quem sabe seja um viés “madisoniano” da minha IA.
O país vai ingressando em um terreno perigoso. Um tema como esse deveria estar sujeito ao escrutínio público, à divergência, ao jogo de pressões e argumentos da democracia. No Congresso. E a linha que vamos adotando vai na contramão do ensinamento moderno: de que sempre que os direitos à expressão foram sujeitos a critérios genéricos, dependentes do arbítrio de quem detém o poder, a liberdade perdeu. Dito isso, não vejo surpresa nenhuma. Há bom tempo o país já aceitou uma estranha forma de democracia de tutela. Aceitou a censura prévia, como rotina, o banimento de jornalistas, a quebra da imunidade parlamentar. Lemos agora que o inquérito das fake news, aberto em 2019, foi novamente prorrogado, para 2025, com os argumentos de sempre. Dois anos depois das últimas eleições presidenciais, a lógica do medo, da urgência, prossegue intacta. O apelo à exceção convertido em regra. O que jamais deveria ocorrer se estivéssemos, de fato, preocupados com o estado de direito. E quem sabe dispostos a aprender com algumas lições da história. O que não parece, definitivamente, ser o caso.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA
Publicado em VEJA de 13 de dezembro de 2024, edição nº 2923
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Alvo do inquérito sobre a tentativa de abolir violentamente o estado democrático de direito, Braga Netto será levado ao Comando Militar do Leste, onde ficará sob a custódia do Exército.
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Articulações com quatro líderes ganham foco de Lul…
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14 de dezembro de 2024 Laísa Dall’Agnol
Quatro importantes líderes partidários e do Congresso Nacional entrarão em 2025 com muitas dúvidas a respeito de seus futuros. O destino de cada um passa, em boa parte, pela decisão de se aproximar ainda mais ou se distanciar do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Rodrigo Pacheco (PSD-MG) e Arthur Lira (PP-AL) encontram-se nos últimos dias de seus mandatos nas presidências do Senado e da Câmara, respectivamente. Embora estejam perto de voltar à planície, acumulam muito capital político para negociar posições privilegiadas no ecossistema de Brasília. Outros dois nomes de peso com situação indefinida são os deputados Elmar Nascimento (União Brasil-BA) e Marcos Pereira (Republicanos-SP). Eles sonharam em comandar a Câmara a partir de fevereiro de 2025, com chances reais de sucesso. O parlamentar baiano chegou a ter a simpatia de Lira, que depois apoiou Hugo Motta (Republicanos-PB), obrigando Pereira a abrir mão de sua pretensão em favor do colega de legenda. Embora a aproximação do recesso e a parada temporária de Lula em razão de urgência médica tendam a adiar as articulações, é certo que o quarteto estará no topo das negociações políticas já no início do próximo ano.
O governo tem muito interesse na aproximação com os quatro líderes, uma vez que suas legendas juntas somam quase 200 deputados e mais de trinta senadores. Esse aglomerado é estratégico não apenas para uma governabilidade mais tranquila de Lula no Congresso, mas também para os projetos eleitorais futuros do presidente. No que diz respeito à interlocução com o Legislativo, as últimas semanas foram marcadas por tensão nas negociações em torno do pacote fiscal e do pagamento de emendas parlamentares, que paralisaram a tramitação da necessária medida.
O aceno de Lula ao quarteto de líderes pode levar o governo um pouco mais para a direita. Ele venceu a difícil eleição de 2022 acenando como nunca ao centro ao trazer o ex-tucano Geraldo Alckmin (PSB) para concorrer como seu vice e, depois, compondo com Simone Tebet (MDB) e outras lideranças do espectro moderado no segundo turno. No entanto, não teve o apoio formal do PSD, União Brasil, PP e Republicanos — esses dois últimos, pelo contrário, estiveram no palanque de Jair Bolsonaro. Ao chegar ao governo, Lula foi loteando a Esplanada e entregou nacos importantes às quatro legendas (veja o quadro). Com uma nova reforma ministerial no horizonte, o petista sente que pode se aproximar mais delas, recalibrando a divisão das pastas e abrindo espaço para siglas amplamente vitoriosas na última eleição.
O maior desafio será definir o que fazer com Arthur Lira. Aliado complexo do governo Lula nos dois primeiros anos de mandato, quando ora se aproximou, ora trocou caneladas, o alagoano já recebeu sinalização de que pode ter o apoio de Lula em seu projeto de chegar ao Senado em 2026. A dificuldade até lá é achar uma pasta grande o suficiente para Lira. A mais cotada é a da Saúde, que concentra o maior volume de emendas e que sempre foi alvo de cobiça do presidente da Câmara e pivô dos embates dele com o ministro Alexandre Padilha (Relações Institucionais). Mas até mesmo aliados do presidente da Câmara veem com ressalvas a possibilidade de ele ser ministro. Uma alternativa a isso seria Lira indicar alguém para a Saúde. Em 2021, ele tentou emplacar Ludhmila Hajjar para a pasta, mas a cardiologista foi vetada por Bolsonaro. “Lira quer manter a influência sobre as emendas e no governo. A opção mais viável seria um cargo alto em uma estatal”, diz um aliado.
Caso o namoro com o governo não avance, Lira tem um outro caminho para manter um bom naco de poder. Ele pode permanecer na Câmara e tentar voltar a liderar um grande bloco de deputados, função que exerceu informalmente e que o projetou como líder do Centrão durante o governo Bolsonaro — o que, mais tarde, o alçaria à presidência da Câmara. Na época, o grupo sob a sua influência incluía partidos como PP, PL, PSD, MDB, DEM, PTB, PROS, Solidariedade e Avante. Lira poderia ainda assumir a frente de uma comissão importante da Casa, como a de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), que já presidiu em 2015. Essa foi a forma que o ex-presidente do Senado Davi Alcolumbre (União Brasil-AP) encontrou para continuar exercendo sua influência após ajudar a eleger Pacheco. A possibilidade de assumir um ministério no governo, porém, daria a Lira maior projeção para tentar voos mais altos no próximo pleito. “O que vai ser em 2026 vai depender muito do que acontecer em 2025 e também em 2026”, disse no fim de novembro.
O futuro de Pacheco é igualmente muito incerto. Ele pode virar ministro e depois disputar o governo de Minas Gerais. O atual presidente do Senado seria útil ao governo por ser de um partido importante e com capilaridade em diversos estados — que abriga quadros de diferentes espectros, desde aliados como Eduardo Paes (PSD), prefeito do Rio, até gente mais perto de Bolsonaro, como o governador do Paraná, Ratinho Jr. (PSD). Também conta a favor de Pacheco a proximidade que ele tem com Alcolumbre, que deve voltar a comandar o Senado. Por fim, ele é uma peça importante no xadrez de Minas Gerais. Segundo maior colégio eleitoral do país, o estado é decisivo para eleger qualquer presidente. “Pacheco não decidiu ainda. Seria um grande governador”, afirma Otto Alencar, líder do PSD no Senado e próximo a Lula. A respeito da possibilidade de sair da presidência do Senado direto para uma vaga na Esplanada, aliados avaliam que há um risco razoável de ingressar no governo na hora errada. Se a popularidade da gestão não melhorar até 2026, o prejuízo de imagem seria enorme.
A negociação do governo por aproximação tende a ser mais simples com Elmar Nascimento e Marcos Pereira. Líderes importantes em seus partidos, ambos abriram mão de suas candidaturas a presidente da Câmara para apoiar Hugo Motta. A possível indicação para ministérios, portanto, poderia funcionar como uma espécie de prêmio de consolação que o governo estaria disposto a conceder. Elmar foi relator da chamada PEC da Transição, importante para Lula antes mesmo de ele iniciar o mandato, e foi depois cotado para assumir o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional no início do governo. A indicação, no entanto, não ocorreu por causa de divergências (hoje já superadas) com o PT da Bahia, especialmente o grupo ligado ao ministro Rui Costa. Recentemente, o deputado afirmou que lançar Ronaldo Caiado ao Planalto em 2026 seria uma “traição” do partido a Lula. Já Marcos Pereira, bispo da Universal e presidente do Republicanos, ajudaria o petista a se aproximar dos evangélicos, segmento mais próximo do bolsonarismo.
A marcha governista desses quatro líderes e seus partidos passa especialmente pela figura de Lula, mas não ocorrerá sem estar na mesa todas as cartas para o jogo eleitoral de 2026. No cenário mais favorável ao governo, Lula teria um ministério mais robusto, ganharia tração na negociação sempre difícil que trava com o Congresso e deixaria isolada a oposição na metade final de seu mandato, quando o horizonte maior será o da próxima — e de difícil projeção — disputa nacional. Só falta combinar isso com o quarteto de caciques partidários.
Publicado em VEJA de 13 de dezembro de 2024, edição nº 2923
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