“Casa de Família” é um romance brasileiro. Não porque se passa na cidade de São Paulo, em um sobrado no bairro da Aclimação, ou porque narra a história de uma família de classe média cujas crianças estudam em escola pública.
É um romance brasileiro porque cutuca fundo em uma ferida do país: a relação com as trabalhadoras domésticas. No romance de Paula Fábrio, todas estão bem ali, ao alcance da mão —ou no quartinho dos fundos.
Nascida em São Paulo em 1970, a autora publicou os romances “Desnorteio”, pelo qual recebeu o Prêmio São Paulo de Literatura em 2013, “Um Dia Toparei Comigo” em 2015 e “Estudo Sobre o Fim” em 2022, entre outros. Em “Casa de Família”, umas das obras vencedoras do Prêmio Carolina Maria de Jesus, a protagonista Soraia rememora 17 anos de vida familiar.
Adolescente nos anos 1980, ela vive com o pai bancário, o irmão mais velho e a mãe acamada com uma doença degenerativa. Está montado o desenho de um quadrado imperfeito, porque nele se insere um quinto elemento para fazer essa engrenagem estropiada funcionar.
De personalidades e origens distintas, as sucessivas empregadas do sobrado limpam latrinas, fritam bifes, lavam as fraldas da doente e levantam seus quase cem quilos. A folga é quinzenal —e é desejável não ter marido ou filhos.
Quando menina, a narradora sofre com a limitação física da mãe. Ainda assim, sente desprezo pelas ajudantes. “Tive nojo da pessoa dela e nenhuma piedade. A piedade veio depois, mas precisou ser injetada em doses pacientes e constantes, ao longo de uma vida inteira.”
Após duas décadas, o ruído dessas vozes insiste em não ir embora, pois “residem no meu ouvido como um pernilongo perdido: um refrão repetido à exaustão”.
De dentro de um passado que se prolonga no presente, o inseto incomoda e pica a lembrança. E assim Ângela, Emília, Ruth, Bete, Francisca e muitas outras brotam no texto, em passagens reveladoras do talento de Fábrio na construção das singularidades de cada personagem —uma fuma cigarro Derby, outra frequenta a igreja, uma terceira acompanha a política nacional, duas delas fogem de maridos abusivos.
Entre idas e vindas temporais, surgem telefonemas, cartas e pensamentos em que a subjetividade dessas mulheres aflora, trazendo sua visão de mundo e a percepção negativa de seus empregadores.
O antagonismo reside nas pequenas coisas, seja no fato de comer depois da família ou no armário manco fechado com fio de cobre. Elas até assistem novela com a patroa e ganham panetone no Natal, mas não gozam de direitos trabalhistas. É uma equação afetiva e profissional que nunca fecha.
Na maturidade, Soraia vai perdendo a memória. De fracasso em fracasso, testemunhou os anos Sarney e o confisco no governo Collor, acontecimentos que só pioraram a combalida situação financeira familiar.
Evitando maniqueísmos, Fábrio dá vida a uma narradora que sente raiva das empregadas, mas também experimenta a repulsa pelos próprios parentes, já que as questões de classe e gênero impregnam todas as relações.
Os quartos de empregada vêm de longe, desde “A Paixão Segundo G.H.”, de 1964, romance de Clarice Lispector em que Janair, ao se despedir do emprego, deixa um desenho a carvão de duas figuras humanas nuas e um cão na parede do “depósito de trapos”.
Ecos desse enfrentamento social fundador da cultura brasileira, de herança colonial e racista, têm aparecido em diversos romances contemporâneos, a exemplo de “Solitária”, de Eliana Alves Cruz, e “Louças de Família”, de Eliane Marques, a partir da experiência de autoria negra.
A narradora de “Casa de Família” lembra que, certo dia, surge o desenho de um coração com os nomes da empregada Emília e da cuidadora Leila na parede do cômodo reservado a elas. Nenhum problema com essa paixão, pensa a família, assim a ansiedade para saírem de folga diminui.
Pode até existir amor em SP, mas patrões serão sempre patrões. O romance convida a olhar e ouvir aquelas pessoas passageiras que habitam as entranhas da casa, endereçando perguntas incômodas —e o melhor, perturbando a paz dos respeitáveis lares brasileiros.
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