Após quase nove anos do rompimento da barragem da Samarco em Mariana (MG), que matou 19 pessoas e espalhou lama tóxica por quase 700 km de Minas Gerais ao oceano Atlântico, um acordo entre a empresa, grupos de afetados e poder público está próximo de ser celebrado. Isso no Brasil, pois na Inglaterra a discussão está apenas começando.
Uma corte inglesa, a partir desta segunda-feira (21), vai determinar se a responsabilização da filial brasileira da BHP, sócia da Vale na Samarco, alcança a matriz da multinacional anglo-australiana, com sede no Reino Unido. Se assim for decidido, a indenização para mais de 620 mil litigantes e dezenas de entidades e municípios poderia chegar a R$ 260 bilhões.
A cifra é superior aos R$ 170 bilhões do acordo brasileiro, anunciado como iminente pela Vale em comunicado ao mercado na sexta-feira (18).
A diferença fica ainda maior quando se nota que, desse total, indenizações individuais, reassentamentos e recuperação ambiental merecerão R$ 32 bilhões. A Samarco já desembolsou R$ 38 bilhões em remediações. O restante, R$ 100 bilhões, será pago em 20 anos para as três esferas de governo financiarem políticas públicas nas regiões atingidas.
A disputa jurídica transnacional também é discutida no Judiciário brasileiro. O Ibram, entidade que reúne as mineradoras do país, foi ao STF (Supremo Tribunal Federal) para contestar os contratos de risco assinados por prefeituras da região com o escritório Pogust Goodhead, autor da ação na Inglaterra.
Em decisão liminar, na última semana, o ministro Flávio Dino suspendeu tais atos, apontando para decisão do TCU que veda o pagamento de honorários de êxito pela administração pública.
Nesse modelo, os advogados só recebem se ganham a causa, normalmente em porcentagem maior do que o habitual. No caso do Pogust Goodhead, como mostrou a Folha, ocorre o financiamento de litígio, em que investidores de risco suportam as custas do processo. Grandes escritórios brasileiros contestaram a estratégia em uma representação na OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).
A banca inglesa, por sua vez, lista dois grandes motivos para mover a ação no exterior. “É fato, estamos indo contra quem tem o dinheiro, o grande controlador, a BHP, que tem sede no Reino Unido. O segundo ponto é que a gente não tem um remédio igual na Justiça brasileira. O direito processual inglês permite que uma enorme coletividade, mais de 600 mil pessoas, físicas ou jurídicas, possam entrar de uma vez só em uma ação”, afirma Caroline Narvaez Leite, diretora do Pogust Goodhead.
A disputa no Brasil não tem como alcançar o caso na Inglaterra, onde o debate, ironicamente, se dará à luz do direito ambiental brasileiro.
Após quatro semanas de considerações iniciais e testemunhos de executivos da BHP, a corte inglesa passará quase um mês ouvindo especialistas em legislação brasileira (direito ambiental, direito societário e responsabilidade civil). Antes de determinar ou não a responsabilização da matriz, o tribunal, acostumado a disputas transnacionais, procurará entender e seguir o que dizem as leis brasileiras. Mas o que elas dizem?
“Que você não depende de culpa para ser responsabilizado. Se eu, empresa, por meio de uma ação minha, causei uma degradação ao meio ambiente, eu serei responsável. É o que a gente chama de responsabilidade objetiva. Independe da minha culpa, do meu ato”, declara Narvaez Leite.
“A legislação é nova, se você comparar com outros diplomas legislativos no Brasil, a jurisprudência ainda está se formando. Não vai se decidir quem é responsável dentro do direito ambiental. Não é essa a discussão. A discussão é se o direito ambiental, na legislação brasileira, alcança uma acionista indireta, que não tinha o controle ou gestão do negócio, da operação”, pondera Aline Cavalcante, advogada da BHP.
Guilherme José Purvin de Figueiredo, doutor em direito ambiental pela USP e coordenador internacional da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil, explica que “a lei estabelece que a obrigação independe da existência de culpa do poluidor”. “Ou seja, não seria sequer preciso provar que houve negligência, imperícia ou imprudência da empresa”, diz.
Já o ajuizamento da ação no exterior “envolve questões mais intrincadas”. A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) diz que a autoridade judiciária brasileira é competente quando o réu for domiciliado no país ou nele tiver de ser cumprida a obrigação.
“Não dispõe, e nem poderia dispor, sobre a competência de autoridade judiciária estrangeira quando o réu for domiciliado fora do Brasil ou o cumprimento da obrigação tiver ou puder se dar no exterior. Não me parece que a LINDB constitua qualquer óbice para o ajuizamento de ação pelas partes prejudicadas”, diz Purvin de Figueiredo.
Já Fernanda Lavarello, diretora de assuntos corporativos da BHP, afirma que a ação na Inglaterra não tem sentido diante do andamento das medidas no Brasil.
“A gente nunca abandonou o Brasil, nunca se recusou a fazer e a aportar recursos nas ações de reparação que estão em andamento no país. Já foram desembolsados R$ 38 bilhões, mais ou menos metade disso para indenizações de pessoas atingidas. Não faz sentido a gente responder por isso duas vezes”, diz.
“Temos empatia com todos que sofreram. Nossa posição é continuar de forma muito comprometida com todas as ações no Brasil e seguir de forma bastante pragmática com a nossa defesa em Londres.”
A fase inicial do julgamento tem etapas agendadas até o próximo mês de março. A expectativa da acusação é que uma sentença sobre a responsabilização ou não da matriz possa ocorrer em meados de 2025.
O passo seguinte, caso a BHP seja condenada, seria determinar o valor de indenização de cada litigante. O processo, obviamente complexo, dado o número de participantes da ação, consumiria de três a cinco anos.
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