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Como Erdogan sufoca artistas numa Turquia em crise – 19/10/2024 – Ilustrada

Como Erdogan sufoca artistas numa Turquia em crise - 19/10/2024 - Ilustrada

Eduardo Moura

É uma parte humilde de Sarıyer, distrito de Istambul. De uma casinha simples, vem uma cantoria em espanhol, que os moradores não conseguem entender. Vinda de uma garganta que tem o turco como língua materna, a pronúncia é surpreendentemente boa. Quem canta é o músico Suat Kaya, acompanhado pelos instrumentos de corda de alguns amigos, integrantes do Grup Yorum.

Eles tocam “Hasta Siempre”, canção cubana dedicada a Che Guevara, para um pequeno grupo. “Não somos apenas uma banda de protesto. Somos um grupo musical de resistência”, diz Seher Adıgüzel, a jovem baixista da banda.

A reportagem conversou com o Grup Yorum em dezembro passado. Hoje, 12 de 30 de seus membros estão presos.

A banda não é um caso isolado. Hoje, na Turquia sob Recep Tayyip Erdoğan, produzir trabalhos artísticos que vão contra o que o presidente chama de “vontade nacional” garante uma estada na prisão ou alguns processos judiciais.

A Susma24, plataforma criada há aproximadamente oito anos para combater a censura e a autocensura no país, mapeou 209 casos de repressão no ano passado. Segundo a organização, é provável que esse número seja apenas a superfície do problema, já que representa somente os casos públicos.

A maior parte dos episódios se concentram na televisão, com 51 casos documentados. Um deles foi a exigência da demissão do ator Mehmet Aslantuğ, que teve de deixar uma série da TV estatal TRT devido a seus posicionamentos políticos. Em outra produção, o filme “Bergen”, a palavra “menstruação” precisou ser cortada na montagem.

Os principais métodos de censura foram as proibições, seguidas de sanções administrativas, mas também houve casos de agressão física, ameaças e assédio policial. Na cidade de Aidim, a 570 quilômetros de Istambul, todas as atividades relacionadas à semana do orgulho LGBTQIA+ foram proibidas. O livro infantil “Morris Micklewhite and the Tangerine Dress”, em que um menino usa um vestido laranja e salto alto, também acabou banido, pelo Ministério da Família do Serviço Social.

Em maio do ano passado, Erdoğan venceu a sua eleição mais acirrada, a primeira disputa presidencial da histórica turca a ir para o segundo turno. Ao terminar esse novo mandato, ele terá ficado 25 anos à frente do poder na Turquia, como presidente e premiê. Apoiado por setores conservadores e religiosos, Erdoğan concentrou poder ao longo dos anos, ao eliminar a figura do primeiro-ministro e decidir sozinho os rumos das políticas do poder executivo.

Além da mídia estatal, seu partido conta com ambiente favorável também na imprensa, ao posicionar aliados no comando e intimidar vozes críticas. Ele chegou a dizer que os partidos da oposição são “pró-LGBTQIA+”, para prejudicar sua imagem ante a parcela mais conservadora da população. “Eles não podem se infiltrar entre nós. A família é sagrada”, afirmou o presidente.

Entre as medidas econômicas, o presidente promoveu a diminuição da independência do banco central do país e cortes da taxa de juros. A inflação chegou a 85% há cerca de dois anos. Neste ano, o problema foi atenuado e caiu para 49,38%, em setembro. Entre os países que fazem parte do G20, grupo que reúne os países com as maiores economias do mundo, a Turquia só perde para a Argentina no ranking de inflação acumulada entre janeiro e abril do ano corrente. Em comparação, no mesmo período, o Brasil teve 4,1%, e os Estados Unidos, 2,9%, de acordo com dados do FMI, o Fundo Monetário Internacional.

Lei e ordem

Seher Adıgüzel conta que, durante a invasão do centro cultural do Grup Yorum, os colegas de banda questionaram os policiais sobre as razões daquela incursão. “Não há nada no sentido jurídico. Não existe lei. Eles juntam um monte de coisa e criam um dossiê”, afirma. “Qualquer um pode ser um terrorista. Se você critica ou faz um comentário contra o presidente Erdoğan nas redes sociais, é considerado um terrorista.”

Alara Sert, da Susma24, diz que a censura é tradição antiga no país, mas a situação se agravou. Ela conta que, quando os perseguidos procuravam a organização, eles explicavam o que a lei dizia, mas isso não é mais possível. “A previsibilidade legal acabou. Qualquer coisa pode acontecer. ‘Se prepare para o pior, espere o melhor.’ Isso é literalmente tudo o que podemos dizer.”

“Este lugar nunca foi realmente livre, e tem sido menos livre para diversas comunidades. Sempre foram o povo curdo, minorias raciais, étnicas ou religiosas. Infelizmente, isso define este país.”

O inferno e os outros

Há cerca de um ano, durante uma sessão solene na Assembleia Nacional, logo após ouvir tocar o hino do país, o presidente fez questão de fazer uma referência, ainda que sem entrar em detalhes, a uma cineasta e a seu filme mais recente.

“Não podemos aceitar que a propaganda de quem atenta contra a vontade nacional seja feita sob o pretexto de arte“, disse Erdoğan aos parlamentares. “É de suma importância que nós, que ocupamos cargos de responsabilidade, nos oponhamos à transformação de valores comuns que enobrecem a humanidade, como a cultura e a arte, em áreas exploradas pelos inimigos da humanidade e da democracia.”

O meio artístico entendeu que ele se referia a Nejla Demirci e a seu documentário “O Decreto”. Mas por que um documentário de uma diretora independente furou a bolha cinematográfica e foi parar na boca do líder do país?

Enquanto muitas obras alfinetam nas entrelinhas as mazelas e contradições turcas, o filme de Demirci põe o dedo numa ferida ainda recente. O longa segue o cotidiano de uma médica, Yasemin, irmã de Demirci, e de um professor primário, Engin. Ambos perderam seus empregos após a tentativa de golpe que, em 2016, transformou a ponte do Bósforo, aquela que separa a Europa da Ásia, em cenário de guerra.

O golpe não vingou, e Erdoğan em seguida promoveu o fechamento de universidades e veículos de imprensa, além de uma demissão de 130 mil funcionários públicos, segundo registros da Anistia Internacional. Entre eles, estavam os personagens da obra de Demirci.

Depois de ser selecionado para a 60ª edição do Festival de Cinema Laranja Dourada de Antália, um dos mais tradicionais da Turquia, “O Decreto” foi barrado. Primeiro, deram a justificativa de que um dos personagens estaria sendo processado e a exibição do filme poderia influenciar o julgamento.

Depois tentaram fazer com que a cineasta retirasse, voluntariamente, o filme do festival. Foi acusado várias vezes de ser um filme de propaganda a serviço de grupos terroristas. Diziam que o filme já tinha ganhado muita visibilidade e que deveria simplesmente ser publicado no YouTube e ficar por isso mesmo.

Um argumento mais convincente foi de que esse governo é muito poderoso e não vale a pena bater de frente.

O Ministério da Cultura e Turismo retirou seu apoio ao festival, seguido pelo Ministério da Justiça e o Ministério do Interior. Instituições privadas, como a linha aérea Turkish Airlines, também debandaram. O evento, então, acabou cancelado, o que só havia acontecido uma vez em 60 anos —em 1980, ano em que um golpe vingou na Turquia.

Até hoje Nejla Demirci não conseguiu exibir o filme em seu país, embora ele tenha sido mostrado em festivais no exterior. Já o Festival de Cinema Laranja de Ouro de Antália voltou neste ano, com a sua 61ª edição, neste mês de outubro. Demirci também voltou a Antália, com o intuito de realizar uma mostra paralela. O governo local notificou a cineasta, proibindo a exibição.

No documento, lemos que quaisquer eventos ou divulgação relacionados ao documentário de Demirci “não são considerados adequados devido à necessidade de prevenir a criação de um ambiente de tensão entre diferentes grupos, proteger a paz e a segurança do povo, a inviolabilidade pessoal, a segurança patrimonial, a saúde pública e a moralidade geral, assim como proteger os direitos e liberdades de outros e prevenir atos de violência e terrorismo”.

Gracias a la vida

O Grup Yorum nasceu em 1985, fundado por estudantes universitários, em meio à ressaca do golpe militar de 1980. Eles eram influenciados pelo movimento latino-americano nascido na Argentina do nuevo cancionero, que buscava se conectar com tradições musicais locais e flertava com o engajamento político de esquerda. “Queremos um país socialista e fazemos a nossa arte visando este país socialista. Fazemos músicas que contribuem com a luta do povo”, diz a baixista Seher Adıgüzel.

As tradições culturais da América Latina e da Turquia são diferentes, mas as crises econômicas por lá são quase tão perenes quanto na Argentina. O contexto político do país de Recep Tayyip Erdoğan, por sua vez, é mais extremo. “Em dois meses, nosso centro cultural foi invadido duas vezes. Dez pessoas foram detidas”, afirma Adıgüzel. “Os shows foram proibidos. E o que um grupo musical vai fazer se está proibido de dar shows?”

As apresentações, ela relata, começaram a ser proibidas em 2015. Em 2020, o grupo virou notícia internacional após dois de seus integrantes, Helin Bölek e İbrahim Gökçek, morrerem em uma greve de fome de cerca de dez meses.

O motivo da greve foi a proibição de seus shows e os constantes ataques do governo à banda, além das constantes prisões de seus membros e invasões.

“Só conseguiremos superar a censura se resistirmos. Alguns de nossos colegas tiveram de morrer para aparecer nesses jornais turcos que se dizem democráticos. Só assim viraram notícia.”

Isso são horas?

A história recente da Turquia tem alguns marcos semelhantes ao Brasil. Em 2013, a população, sobretudo os jovens, encheram as ruas de cidades como Istambul e Ancara. O motivo inicial era uma reforma na praça Taksim, mas escalou para um descontentamento geral contra o governo do AKP, Partido da Justiça e Desenvolvimento, fundado por Recep Tayyip Erdoğan.

O clima de tensão se acirrou em 2016, quando setores das Forças Armadas turcas tentaram dar um golpe de Estado, mas falharam. Assim, diferente do Brasil, o governo turco ainda tem de antagonizar com grupos separatistas e fundamentalistas. De 2013 a 2016, uma série de ataques terroristas, atribuídos ao Estado Islâmico e a grupos separatistas, assolaram a Turquia.

Artistas ouvidos pela reportagem dizem que esse contexto ajudou a dar corpo a um sentimento de insegurança na população, o que deu mais sustentação ao governo, em meio às crises políticas e econômicas. Dessa forma, o governo passou a ter certa legitimidade para tachar de terrorista qualquer opositor.

Depois do golpe que não vingou, Erdoğan instaurou um estado de emergência, passando a governar por decretos. É por isso que, embora haja um consenso no setor cultural de que a Turquia nunca foi democrática de fato, os anos de 2013 e 2016 são considerados marcos no que diz respeito à liberdade artística no país. “Embora o período de estado de emergência tenha durado oficialmente dois anos, muitas mudanças foram feitas nos âmbitos legal, político e, com o tempo, nas esferas social e econômica”, diz Alara Sert, da Susma24, que monitora os casos de censura e apoia artistas naquela região.

A cineasta e professora universitária Sibel Tekin começou a se envolver com videoativismo nos protestos de 2013.

Ao longo desse período, Sibel Tekin filmou diversos grupos de oposição que se manifestaram àquela altura. “Havia censura antes de 2013, mas as coisas estão piorando”, ela afirma. “Em Istambul e Ancara, manifestantes enfrentaram [pela primeira vez] ataques da polícia e foram atingidos por caminhões equipados com canhões de água.”

Nessa época, afirma Tekin, muitos daqueles que participaram das manifestações diziam que passaram a compreender como se sentiam as pessoas das províncias curdas, ou seja, sentiram na pele a repressão do governo. “Mas essa compreensão e empatia duraram apenas um ano. Depois, todo mundo se voltou cada um aos seus próprios problemas. Quer dizer, essa persistência da censura não tem a ver apenas com o governo atual, mas com uma questão mais ampla, de princípios e valores da população turca”, ela acrescenta.

Em 2016, uma arbitrariedade específica da administração Erdoğan chamou a atenção de Tekin. O governo decidiu deixar o país permanentemente em horário de verão. A cineasta achou que seria interessante um documentário sobre a vida de pessoas que precisam acordar cedo para trabalhar, quando ainda está escuro, sobretudo no inverno, quando há menos horas de luz natural. Ainda inédito, o longa-metragem está sendo chamado provisoriamente de “A Vida Começa no Escuro”.

“À primeira vista, não é um tema tão político”, afirma ela. Só que o Estado turco discorda, e ela acabou presa no segundo dia de filmagens. “Eu estava em Tuzluçayır, em Ancara, um bairro onde moram muitos operários, alevitas e esquerdistas. Lá foi uma das primeiras locações, porque trabalhadores de fábricas começam o dia muito cedo, quando o sol anda não nasceu.”

Primeiro, as autoridades afirmaram que Tekin havia sido presa por ter filmado uma viatura policial. Depois, segundo seus advogados, foi dito que a acusação veio de agentes penitenciários que estavam dentro de um carro e pensaram que ela os filmava. E, claro, depois vieram acusações de terrorismo.

Depois de passar uma noite sob custódia, ela prestou depoimento e foi levada diretamente ao tribunal para prisão preventiva. “O juiz, então, decidiu pela minha prisão. E eu trabalho na universidade, sou funcionária pública, não havia risco de eu fugir”, afirma Tekin, que acabou ficando presa por 45 dias.

“Comecei filmando um documentário e terminei acusada de fazer parte de uma organização terrorista”, diz.

Eu não vou embora

Nenhum dos artistas turcos ouvidos pela reportagem afirmou que pretende deixar o seu país em busca de mais liberdade para conseguir trabalhar.

“Provavelmente o objetivo da prisão era me fazer desistir ou talvez, por meio de mim e do meu exemplo, assustar outras pessoas”, afirma Sibel Tekin. “Mas, ao me prender, eles me fizeram ficar mais corajosa”, ela acrescenta.

Seher Adıgüzel, do Grup Yorum, afirma que, depois da morte de dois integrantes, a banda e o governo chegaram ao que chama de uma “fase de diálogo”. “Mas, se necessário, pagaremos novamente com a nossa fome”, diz ela.

A cineasta Nejla Demirci tem outra visão. Segundo ela, o fato de estar enfrentando problemas na Turquia não significa que artistas da Europa e dos Estados Unidos estão blindados da censura. “Nos países considerados desenvolvidos, artistas e cineastas não são muito diferentes de mim”, ela afirma.

“Mas nenhum artista de qualquer lugar do mundo me ligou. Ninguém perguntou ‘o que podemos fazer por você?’. Eu sei que isso não é uma coisa fácil de se fazer. Mas isso diz muito sobre o ambiente artístico e cultural do mundo. Mostra que lá fora não é muito diferente daqui, na Turquia.”





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