Existe uma máxima tragicômica entre as mulheres que diz: se você está com um cara organizado emocionalmente, financeiramente e que não usa camisa de time e regata, uma mulher antes já sofreu e investiu tempo nesse ativo. Dizem que toda brincadeira tem um fundo de verdade, e isso me faz lançar uma provocação: antes de nos perguntarmos por que eles optam por outras mulheres depois de tanto trabalho, que tal refletirmos sobre por que escolhemos homens problemáticos e assumimos essa missão como prova de amor?
Lembrei de uma entrevista da atriz Julia Roberts em que ela diz: “Mulheres, vocês não são centros de reabilitação para homens mal criados. Não é seu trabalho corrigi-los ou criá-los. Vocês querem um companheiro de vida, não um projeto de trabalho social”. Arrisco dizer que a razão pela qual nos prendemos a essa dinâmica é que não se trata apenas de um “trabalho social”, mas de um investimento próprio, ainda que custemos a admitir.
Assim como Julia domou Richard Gere no clássico dos anos 1980, muitas mulheres se esgotam tentando ser a exceção. Acreditam que com elas ele será diferente, como se a capacidade de transformar o boy lixo em homem luxo fosse um atestado do seu valor e da sua singularidade (alô, competição feminina).
Dentro dessa lógica narcísica, vale se questionar: estamos nos relacionando com esses homens ou com o potencial deles? Investir e insistir em uma relação onde você se sacrifica em nome de um futuro melhor pode parecer altruísta, mas é altamente egóico e controlador. Isso porque conferir a si mesma o papel de guiar essa versão 5.0 do parceiro é uma forma de se manter apaixonada por sua idealização, pela fantasia de lucro emocional, e não pela pessoa real, falha e imperfeita que hoje se apresenta.
Confundir cuidado e controle com amor é algo diretamente ligado aos papéis de gênero. Desde pequenas, crescemos sob o mito do “quem ama, cuida”. O primeiro presente? Uma boneca para cuidar como filhinha. Os exemplos em casa? Mulheres que se doaram integralmente à família. “Seja uma boa menina, leve o jantar para o seu pai que está cansado”, ouvimos. E assim aprendemos que seremos amadas pelo que fazemos, não pelo que somos.
Essa é a raiz da codependência: depender que o outro dependa de nós para nos sentirmos amadas. Como boas meninas, as codependentes se tornam especialistas em cuidar – escutam desabafos, resolvem problemas, oferecem apoio incondicional e assumem responsabilidades que não são suas. Acreditam estar sendo generosas, sem perceber que esse empenho excessivo é uma forma de controle. Tornar-se indispensável é também uma tentativa desesperada de garantir que o outro fique.
Mas o peso disso é imenso, e o ressentimento vem: por não ser reconhecida, por não receber o mesmo cuidado –quem cuida de quem cuida? —e, muitas vezes, por ser trocada por outra, que não quis ser a analista, contadora ou governanta do namorado.
Escolher homens repletos de problemas também é uma forma de justificar a falta de afeto e atenção. Ao comparar suas necessidades com as deles, as suas sempre parecem menores. Assim, por amor, você se cala, relativiza seus desejos e se anula.
E assim romantizamos migalhas, pouca disponibilidade, poucas ações. O famoso looping da compulsão à repetição: o lugar de quem nunca é boa o suficiente. A que, desde a 3ª série B, aprendeu a ser a esforçada pra garantir um espaço na fila do recreio e na mesa do jantar – porque só assim dava para não ser ofuscada pela beleza da irmã mais nova ou pela rapidez de raciocínio da prima. Mas talvez, agora, 20 ou 30 anos depois, seja hora de cabular a aula da boa moça proativa e aprender a usufruir de um amor onde as pessoas se escolhem pelo que são, e não pelo que fazem.
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Discussões, notícias e reflexões pensadas para mulheres
Relações saudáveis são construídas no respeito, na autonomia e no apoio mútuo. Todo mundo tem problemas, e podemos ser testemunhas e cúmplices na jornada de nossos parceiros –não analistas, consultoras ou gestoras de crise. Não querer resolver os problemas do outro é aceitar a insuficiência dele e também sua própria liberdade para agir como quiser e puder em relação às próprias questões.
Sim, a liberdade do outro é desestruturante, mas é justamente nessa desestrutura que você pode encontrar desequilíbrios que te levem a se conectar mais com o seu sentir e menos com o seu servir. É também se dar a possibilidade de compartilhar as suas angústias e necessidades, sem compará-las sobre o que é mais grave.
Te convido a sair do amor-cuidado e construir um amor-presença. Uma relação horizontal, que funciona como gangorra, e não como balança –porque reciprocidade absoluta não existe, mas o desejo genuíno de estar junto, sim.
Se você também tem um dilema ou uma dúvida sobre suas relações afetivas, me escreva no colunaamorcronico@amorespossiveis.love. Toda quarta-feira respondo a uma pergunta aqui.
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