Se os carros queimados, as escolas crivadas de balas, os edifícios demolidos e as ruas desoladas no centro de Porto Príncipe não fossem evidência suficiente das coisas terríveis que aconteceram aqui, alguém deixou um sinal ainda mais tenebroso: crânios no meio da rua.
Uma caveira humana fincada em um bastão com outra no chão ao lado, em frente a um escritório do governo, aparentemente foi colocada como uma mensagem ameaçadora de membros de gangues para os policiais quenianos e haitianos que tentam restaurar a ordem no Haiti: “Cuidado, nós dominamos estas ruas”.
Um policial queniano vestindo colete à prova de balas e capacete e patrulhando em um veículo blindado americano tirou uma foto com seu celular, enquanto outro manobrava o veículo ao redor dos crânios.
Eu, junto com um fotógrafo do New York Times, participei de uma patrulha por Porto Príncipe, a capital do Haiti, com uma missão de segurança multinacional liderada pelo Quênia implantada no país. Durante essas seis horas de patrulha, os quenianos foram em grande parte ignorados pelas pessoas na rua e ocasionalmente provocados; o veículo foi baleado uma vez.
A patrulha ofereceu um vislumbre dos enormes desafios que a força queniana enfrenta ao tentar retomar o controle de Porto Príncipe de grupos armados que desmantelaram a vida no país, matando indiscriminadamente, estuprando mulheres, incendiando bairros e deixando centenas de milhares famintos e em abrigos improvisados.
A rota percorrida pelos agentes revelou muitos edifícios que a polícia demoliu para tentar eliminar esconderijos de gangues.
Os agentes também viajaram até o porto de Porto Príncipe —o principal canal para alimentos, remédios e outras mercadorias para o Haiti— sempre alertas para potenciais atiradores escondidos nos telhados.
No porto, trabalhadores estavam colocando mercadorias em uma balsa para uma nova rota marítima para transportar itens para as províncias por água, evitando os redutos de gangues em terra.
Os agentes, cujos supervisores não foram autorizados a dar entrevistas, disseram que recentemente intensificaram suas operações em um esforço para pressionar as gangues em várias frentes.
Um dia depois, um trabalhador portuário foi baleado e ferido.
Nesse mesmo dia, os quenianos se envolveram em um tiroteio com membros de gangues em motocicletas e encontraram os caminhos para o porto bloqueados.
“O que me surpreendeu tanto quando cheguei aqui é como as gangues ousam atacar em plena luz do dia”, disse Godfrey Otunge, o comandante queniano da força policial multinacional, em uma entrevista. “Como isso pode acontecer?”
Desde que os primeiros agentes quenianos chegaram em junho, as autoridades falam em avanços importantes à medida que a vida em alguns bairros lentamente retorna ao normal.
O aeroporto de Porto Príncipe foi reaberto depois que as gangues foram removidas de seu perímetro. Muitos vendedores ambulantes estão de volta ao trabalho, e as gangues também foram expulsas do principal hospital público da capital.
Mas os agentes quenianos estão em grande desvantagem numérica, e as gangues fortemente armadas permanecem firmemente entrincheiradas em muitas partes de Porto Príncipe. Grandes áreas continuam sendo zonas proibidas, incluindo o centro da cidade e a área ao redor da Embaixada dos EUA. As gangues não controlam mais o hospital público, mas ele está em ruínas e não foi reaberto.
Grupos criminosos também expandiram seu controle fora da capital, tomando três estradas principais que ligam Porto Príncipe a outras partes do país e sitiando cidades e vilarejos menores que a força internacional não tem recursos para alcançar.
Na semana passada, uma gangue no Vale do Artibonite, na parte central do país, atacou uma cidade, deixando 88 pessoas mortas, incluindo 10 membros de gangues.
Mais de 700.000 pessoas que fugiram de suas casas durante uma onda de violência no último ano e meio ainda não conseguem retornar. Metade da população do país —cerca de 5,4 milhões de pessoas— luta para se alimentar todos os dias, e pelo menos 6.000 pessoas vivendo em acampamentos precários enfrentam fome, de acordo com uma análise divulgada recentemente por um grupo de especialistas globais.
O Haiti tem sido assolado por níveis surpreendentes de violência de gangues por mais de três anos, desde que o último presidente eleito do país, Jovenel Moïse, foi assassinado.
Muitas pessoas que fugiram da violência passaram a residir em escolas públicas e prédios do governo. Quase 3.700 pessoas foram mortas este ano, segundo as Nações Unidas.
As estradas bloqueadas que levam para dentro e fora de Porto Príncipe tornam “quase impossível” para a polícia intervir a tempo quando as gangues atacam novos locais fora da área metropolitana, disse o primeiro-ministro do Haiti, Garry Conille, em uma reunião em Nova York no mês passado.
Mas a força liderada pelo Quênia é pequena. Se o plano original era o envio de 2.500 agentes, a força conta hoje com pouco mais de 400. Do outro lado, especialistas estimam que até 15.000 pessoas são membros de 200 gangues haitianas.
A missão de US$ 600 milhões foi aprovada pelas Nações Unidas, mas é em grande parte financiada e organizada pelos Estados Unidos. Ela depende de contribuições voluntárias e, até agora, recebeu US$ 369 milhões dos Estados Unidos e US$ 85 milhões de outras nações.
O governo Biden anunciou recentemente uma alocação de ajuda separada —US$ 160 milhões— para a Polícia Nacional do Haiti.
O ministro das Relações Exteriores do Quênia, Musalia W. Mudavadi, disse na reunião do mês passado em Nova York que 400 agentes só poderiam ser eficazes até certo ponto, deixando claro que as capacidades da força estavam prejudicadas.
O governo Biden está tentando transformar o envio dos policiais quenianos em uma missão oficial de manutenção da paz da ONU, o que exigiria que os estados membros contribuíssem com dinheiro e pessoal.
Transformar o envio queniano em uma missão de manutenção da paz pode ser a única maneira de libertar o Haiti do domínio das gangues e permitir a realização de eleições para escolher um novo presidente, disseram especialistas.
As operações de manutenção da paz da ONU têm uma longa e complicada história no Haiti, repleta de abusos sexuais e saneamento precário que trouxe cólera ao país e causou milhares de mortes.
Mas, apesar dos problemas passados, o chefe do conselho presidencial de transição do Haiti, que é responsável por definir as eleições, instou as Nações Unidas a retornarem.
“Estou convencido de que essa mudança de status, ao reconhecer que os erros do passado não podem ser repetidos, garantiria o pleno sucesso da missão”, disse o presidente interino do Haiti, Edgard Leblanc Fils, à Assembleia Geral da ONU no mês passado.
Carlos Hercule, ministro da Justiça do Haiti, disse que estava se sentindo impaciente porque muitos policiais haitianos deixaram o país, acrescentando que o Haiti precisava de um destacamento reforçado em breve.
Otunge, ex-diretor de operações de segurança da Polícia do Quênia que participou de missões de paz no Sudão do Sul e na Somália, pediu paciência.
Ele não vai parar, disse, até que o Haiti “recupere sua glória.”
“Eu não posso falhar com o povo haitiano”, disse Otunge. “Nunca falhei, e não estou pronto para falhar no Haiti.”
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