Nós temos uma brincadeira que funciona assim: eu preciso cafungar demoradamente o pescoço dela para ter certeza de que veio a criança certa da escola. Rita adora, morre de rir, se deixa cheirar por algum tempo, até que pergunta se veio mesmo a criança certa. E eu digo que sim. Certíssima. Nenhuma melhor. A filha esperada uma vida toda. Digo que desde que eu era pequena já sabia que ela chegaria, com as pernas compridas, a risada debochada e a braveza. Rita insiste que é mentira, mas divide comigo o ilusionismo desse “para além de nós” que experimentamos quando amamos demais.
O tempo todo preciso me controlar para não lançar meu nariz, feito um mamífero selvagem, para dentro do cheiro do seu couro cabeludo. Assim que acorda, bem cedinho, Rita me pergunta se no final do dia vamos ter o momento “filminho só nós duas”. Eu digo que sim. E enquanto ela for pequena, sei que vou negar a maioria dos convites para sair de casa. Só me esforço se o amigo é realmente um parceiro de vida ou se o evento tem extrema importância profissional. Como trocar o momento “filminho só nós duas” por qualquer programa nota sete e meio?
Lembro quando chegamos a uma casa alugada no interior e eu fui arrumando o armário do quarto com minhas roupas e as roupas da minha filha e meu namorado da época chiou de leve: não seria melhor ela ficar no quarto ao lado? Rita estava enciumada, tinha cinco anos. Ia ficar comigo, obviamente. Deveria ser simples: é preciso amar uma mulher com filhos sabendo que ela é uma mulher com filhos. É preciso amar os filhos de uma mulher com filhos. É preciso que essa criança sinta que é amada por qualquer pessoa que chegue perto da sua mãe. E isso é inegociável. Do contrário, a relação não apenas morre, mas estrebucha envenenada.
Percebo os olhares das moças da minha nova convivência, mulheres que, acertadamente, priorizam sua vida social, profissional e amorosa. Parece que ser “a mãe trouxa pelo filho” é algo muito distante da elite intelectual. Que seja, mas não tenho forças suficientes em mim para lutar contra esse arrebatamento, não tenho registros no sangue, não tenho sequer intenções. Serei para sempre a mãe trouxíssima pela sua filha.
Agora ela pede massagem em seus pezinhos enquanto faz a lição de casa. É muita folga. Muita. Mas quem aguenta aquela mini bisnaga cor-de-rosa mexendo os dedinhos em busca de um prêmio por já saber, tão pequena, somar dezenas com unidades? Seu perfil, a bochecha redonda que ela entorta porque prefere ser cínica a queridinha, a boca sempre com um bico meio bravo, os olhos imensos que ela revira quando digo que tenho mais o que fazer.
Grávida de dois meses, vomitando o tempo todo, cheguei a perguntar para a minha analista se existia alguma possibilidade de eu não amar minha filha. Ela disse que sim, algumas mães não amam seus filhos, mas não havia nada em mim que sugerisse que eu era como essas mulheres. Hoje lembro disso como lembro de todas as vezes que fiquei totalmente imóvel de frente para um avião. Por que eu entraria naquele negócio para conhecer um lugar novo, distante e com estímulos e informações que com certeza me trariam tantas inquietudes e instabilidades? No conto “A legião estrangeira”, de Clarice Lispector, em certo momento a narradora diz assim: “Eu que não me lembrara de lhe avisar que sem o medo havia o mundo”.
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