[RESUMO] O que o poeta alemão Goethe (1749-1832) tem a ver com o cineasta americano Francis Ford Coppola? Autor aponta uma série de semelhanças, além do fato de o diretor de “O Poderoso Chefão” ter se inspirado em livro do escritor para um de seus filmes. Ambos eram transgressores, fascinados por magia e ocultismo, criaram grandes obras ainda jovens e, na velhice, arriscaram tudo, para espanto do público, na criação do trabalho síntese de suas vidas.
Em um ensaio arrebatador sobre “Fausto – Parte 2”, Otto Maria Carpeaux narra que Goethe demorou 60 anos para entregar (postumamente) o desfecho da sua obra-prima.
Segundo os relatos da imprensa contemporânea, o cineasta Francis Ford Coppola demorou cerca de quatro décadas para finalmente lançar nas telas o seu tão esperado filme “Megalópolis”.
Goethe deixou sua marca em outras obras célebres, como “Os Sofrimentos do Jovem Werther” (1774) e “Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister” (1796). Coppola se tornou um mito cinematográfico ao produzir quatro obras-primas seguidas na década de 1970: os dois primeiros “O Poderoso Chefão” (1972 e 1974), o drama “A Conversação” (1974) e o épico de guerra “Apocalypse Now” (1979).
Por coincidência, Coppola também é um obcecado por Goethe. Assim como o escritor alemão, tentou criar a sua Weimar particular ao bolar, por três vezes, o seu estúdio American Zoetrope (e faliu sempre de modo triunfal).
Não só isso: Coppola se inspirou em Goethe —em particular, no romance “As Afinidades Eletivas” (1809)— para escrever o roteiro de “O Fundo do Coração” (1981), outra de suas obras-primas, mas desta vez fracassada, porque nem a crítica, nem o público entenderam a visão do cineasta.
O mesmo acontece agora com o lançamento de “Megalópolis”. Em geral, quem odiou o filme, odiou pelas razões erradas. Quem gostou, também gostou pelas razões erradas.
Apesar de ser classificado como um diretor de “obras clássicas”, na verdade Coppola é o mais transgressor dos cineastas de Hollywood. Sua estética não é careta; pelo contrário, é extremamente alucinatória, chegando ao ponto do mau gosto e da artificialidade. Na visão dele, o cinema serve para celebrar duas coisas: a magia e (hélas!) o casamento.
Não à toa, o nome do seu estúdio é Zoetrope, o termo técnico para “lanterna mágica” em grego. Ora, as origens do cinema estão aí. Portanto, para Coppola, a magia é o verdadeiro assunto de todos os seus filmes.
Para Goethe, a literatura era também um ato de encantamento. Não por acaso, durante toda a sua vida foi um obcecado pela “doutrina das cores”, ao insistir que Isaac Newton só tinha entendido parte da revolução da óptica. Outro que se revelou fascinado por essa mesma doutrina foi o cinematografista italiano Vittorio Storaro, que, vejam só, filmou com Coppola justamente “O Fundo do Coração”, inspirado nas ideias do poeta alemão.
Cada personagem de Coppola e Goethe são magos, sujeitos que precisam praticar, tanto dentro como fora deles, a descida aos infernos para que, de lá, extraiam a pedra filosofal que finalmente regenerará a sociedade. Em alguns casos, a empreitada dá certo; em outros, ela dá muito errado.
Como são autores que vivem dentro do período moderno, Coppola e Goethe sabem que este tipo de empreendimento tem grandes chances de ser uma tragédia. Por isso, passaram o resto das suas longas vidas encontrando uma forma de salvar o mago que tanto admiravam (e que, no fundo, alegam também representar).
Goethe fez isso com a segunda parte de “Fausto”; Coppola praticou o mesmo truque com “Megalópolis”.
E, novamente, ninguém entendeu. A imprensa e os influenciadores da internet chamaram o filme de ruim, de feio, de cringe, de bizarro, de chato —enfim, de tudo aquilo que não se pode classificar como “bom”, de acordo com o nosso gosto supostamente tão inovador.
Em resposta a tudo isso, Coppola agiu como Goethe: de forma olímpica. Vendeu seu longa como qualquer grande vendedor faria. Escuta as alegações dos críticos e do público com aquela condescendência de quem sabe que ninguém captou a sua artimanha.
O senso comum afirma que “Megalópolis” é sobre a Roma Antiga, sobre utopia, sobre arquitetura, da mesma forma que, no passado, dizia que “Fausto – Parte 2” era uma peça de teatro sobre o intelectual que faz um pacto com o diabo.
Na verdade, ambos os artistas usam esses motes apenas como pretextos.
Em “Megalópolis”, o personagem interpretado por Adam Driver, César Catilina, não é apenas um arquiteto, um artista, um “grande homem”. É um mago. Manipula o tempo. Manobra um elemento supranatural, semelhante aos metais da alquimia medieval, chamado “megalon”. Com ele, consegue reconstruir cidades, vidas, por vezes driblar até a própria morte.
Mas César é um mago que se corrompeu. Assim como Fausto, ele fez seu pacto diabólico (consumado com a morte trágica da esposa). Para isso, precisa se recompor. Consegue por meio do encontro com Julia, a filha de seu rival político, Frank Cícero, que, aqui, não é apenas um prefeito conservador, mas também o elemento de estabilidade que toda cidade precisa para sobreviver a qualquer tipo de catástrofe.
Cícero é um homem bom. Gosta da família, sobretudo da filha, a quem ensinou os clássicos. Mas também cometeu seus pecados para se manter no topo das elites. Mentiu, trapaceou.
César não é igualmente uma flor que se cheira. Deflorou uma vestal virgem (que depois descobriu-se que não era tão virgem assim). Desprezou a própria mãe no momento de maior triunfo (nada mais, nada menos quando recebeu o Prêmio Nobel).
Quanto a Julia, ela está gostosamente mergulhada no lodo moral da cidade decadente onde é rainha. Cheira um pó. Beija as primas de forma lasciva. Paquera os seguranças. Mas tem curiosidade por conhecimento. E mais: ela é a única que testemunhou a habilidade mágica de César Catilina de suspender os efeitos do tempo.
É a partir daí que Coppola constrói o enredo do filme. É bom repetir: “Megalópolis” não é sobre utopia urbanística. É sobre o encontro de duas pessoas, César e Julia, que formarão um casamento alquímico que transformará a Nova Roma onde vivem na Nova Jerusalém onde todos querem viver.
Este tipo de imaginação —ocultista, por assim dizer— não é novidade para Coppola. A trilogia do “Chefão” é uma iniciação satânica de Michael Corleone. “Apocalipse Now” versa sobre a morte do rei como forma de regenerar uma sociedade estéril e contaminada por guerras inúteis (os EUA na época do Vietnã).
“Drácula de Bram Stoker” (1992) se passa na Romênia, capital do esoterismo europeu. “Velha Juventude” (2007) é baseado em um romance de Mircea Eliade, um dos papas na disciplina da história das religiões (e adepto ferrenho do simbolismo alquímico).
A mesma coisa se pode dizer de Goethe. Em Weimar seu apelido era “o alquimista”. Leu o que pôde sobre demonologia em sua juventude. Os romances, poemas e novelas que escreveu são povoados por espectros de desejo, de cobiça, de dinheiro.
Sim, de dinheiro. O vil metal era uma das grandes preocupações do escritor alemão —assim como do cineasta americano.
Em “Fausto – Parte 2”, há o famoso trecho em que o bruxo pede a um governante que tire o lastro do ouro para que a moeda alemã se transforme finalmente em “mero papel”. Isso seria a magia em seu ápice. Na década de 1970, Richard Nixon teria a mesma atitude com o dólar. Coincidência ou não, o nosso atual sistema financeiro é baseado nesta abstração elevada ao cubo.
Pouco depois, Coppola pedia falência pela segunda vez porque “O Fundo do Coração” foi um gigantesco fracasso de bilheteria.
Goethe nunca foi à falência porque tinha Karl August, o duque de Weimar, como seu mecenas. O resultado prático foi que ele nunca dizia claramente o que pensava. Tinha o comportamento de um cortesão.
Durante os 60 anos em que se comportou assim, escreveu “Fausto”. A primeira parte foi lançada em 1806, e todo mundo adorou, mas pelos motivos errados. Já a segunda, publicação póstuma em 1832, foi igualmente incompreendida, mas também odiada.
Coppola nunca teve mecenas nenhum. Foi obrigado a fazer filmes de encomenda para pagar suas contas com os bancos. Sempre disse o que realmente pensava. Afinal, não é um cortesão. Brigou com produtores para fazer as coisas ao seu modo. Foi assim quando filmou “Cotton Club” (1984), a terceira parte do “Chefão” (1990), “Drácula” e até mesmo um filme que até hoje ninguém gosta (pelos motivos errados): “Jack” (1996).
O longa conta a história de um garoto cujo corpo cresce numa velocidade muito mais rápida do que a habitual de todas as pessoas. É interpretado por Robin Williams, em modo infantiloide. Parece trama de filme da Disney, mas, na verdade, é Coppola comentando sobre outro tópico da alquimia: a criança perfeita, o “puer aeternus”, o equivalente à pureza final que ocorre na pesquisa do mago.
Uma década antes de “Jack”, Coppola passou pelo trauma que ninguém gostaria de experimentar: perder um filho. Gian-Carlo, seu provável sucessor, morreu em um medonho acidente de barco. Já Goethe viu seus cincos filhos morrerem, inclusive August, o único que chegou à idade adulta.
A soma de todos esses medos criou, na obra de cada um deles, o “estilo tardio” que definiu os anos derradeiros de suas vidas. Goethe concentrou tudo o que sabia em “Fausto – Parte 2”; para Coppola, o resultado foi “Megalópolis”.
Eles também sabiam que o público não entenderia o que estava em jogo. Goethe se recolheu covardemente e deixou que a obra falasse por si só, depois da sua morte. Assim, todo mundo ficou escandalizado quando o alquimista de Weimar se exibiu como um criptocatólico que só pensava na redenção da alma, com o intermédio da Virgem Maria, em um ambiente encharcado de protestantismo e de maçonaria iluminista.
Coppola foi para a linha oposta. Investiu US$ 140 milhões, cerca de R$ 820 milhões, do próprio bolso (vendeu uma parte do seu bem-sucedido negócio de vinhos) e resolveu bancar “Megalópolis” para ter controle absoluto. Foi sua solução contra o dinheiro que falsificava a magia. Deu literalmente a cara a tapa. Tudo isso aos 85 anos.
E, novamente, todo mundo ficou escandalizado quando se soube que o cineasta dos grandes épicos do passado é, na verdade, uma criança grande (e perfeita) que usa o cinema como uma gigantesca “fábula” (o subtítulo irônico e esclarecedor de “Megalópolis”) para recuperar o prumo das nossas existências.
Como diria um outro mago, desta vez supremo: quem tenha ouvidos para ouvir que ouça (ou, no nosso exemplo cinematográfico: quem tenha olhos para ver que veja).
Hoje, sabemos que Goethe venceu a posteridade, com a segunda parte de “Fausto”. Quanto tempo ainda teremos para reconhecer que Francis Ford Coppola precisa ser celebrado pelos motivos corretos?
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