Foi um tanto estranha a reação do público do CineSesc em 17 de outubro, dia de abertura da Mostra. Embora estivesse bastante atento ao filme de Mati Diop, os aplausos foram muito tímidos. Talvez “Dahomey” tenha acabado de maneira seca e todos esperássemos que continuasse de algum modo.
O certo é que “Dahomey” é um documentário precioso que toma por pretexto a volta de 26 peças das 7.000 sequestradas pelos franceses após a invasão do reino da África ocidental, hoje República do Benin, em 1894. A surpresa é o narrador, a peça 26, que expressa o alívio por voltar ao lugar que é seu depois de mais de um século (o retorno data de 2021).
Entre os vivos as reações são divergentes: há quem elogie o esforço do governo para trazer as peças de volta; há quem julgue 26 um número irrisório diante dos 7.000 sequestrados; há quem denuncie a “boa vontade” de Macron e dos franceses, que querem se fazer de simpáticos, depois de colonizarem o país por quase 70 anos.
Alguém menciona a chegada das peças como motivo de orgulho nacional. Outro acusa a população de hipocrisia, pois vai à igreja católica de dia, mas de noite pratica a religião ancestral. Uma discussão se estabelece sobre a porcentagem da cultura local saqueada: 10%? Ou 90%? A variedade das reações é imensa. É muito da cultura material, em todo caso, mas que dizer da cultura imaterial? Das danças, dos ritos, das crenças.
Para o quadro colonial ficar mais completo, essas crenças envolvem elementos religiosos iorubá, entre outros que conhecemos no Brasil. Como existem notícias de presentes dados por um rei local a d. João 6º, não é difícil deduzir, por todos os motivos, que muitos dos escravizados no Brasil vieram do antigo Daomé.
Em resumidas contas, “Dahomey” nos coloca diante do caos produzido pelo colonialismo europeu entre os próprios ex-colonizados locais, e mais amplamente na África, que se reproduz na imensa variedade de pontos de vista expressados no filme sobre o retorno das 26 peças da estatuária agora restituídas. Elas são muito mais que isso. Elas colocam os ex-colonos (a independência se deu nos anos 1960, portanto há bem menos de um século) diante da necessidade de recriar seu país a partir, entre outras coisas, de uma língua estrangeira (o francês) imposta ao país, que os afastou de sua língua original e, com isso, de seu modo de pensar.
Diante desse quadro labiríntico, o resultado a que chega a parisiense Mati Diop é notável, na medida em que o documentário promove uma ordenação do caos. Não é para isso que existe a arte?
Sim, Diop realiza uma quase miraculosa ordenação dos discursos tão díspares que procuram responder ao desafio de construir no século 21 um país destruído no século 19. Por mais díspares que sejam, esses discursos não enunciam nenhum disparate: todos apontam para um mesmo lado, todos pensam uma maneira de sair do labirinto colonial. É como se cada falante detivesse um fragmento do mosaico sobre o qual Benin precisará trabalhar para acompanhar as transformações da cultura ocidental que lhe foi legada (e de que hoje faz parte, queira ou não) sem renunciar a sua herança ancestral, essa que lhe foi roubada pela colonização.
O que produz a devolução dessas 26 peças do tesouro roubado é um rigoroso quebra-cabeça, a que “Dahomey” dá forma, inclusive pelo seu caráter sintético. São 81 minutos de duração para uma história que inclui reis, guerreiras amazonas, escravizados etc. —destinos tão diversos que, aliás, incluem também a nós, brasileiros, nessa história infame.
O Leão de Ouro ganho pelo filme em Berlim faz todo sentido.
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