Ícone do site Acre Notícias

Dano colateral | VEJA

Dano colateral | VEJA

Arthur Pirino

O tema da anistia aos condenados do 8 de Janeiro pairou sobre as eleições no Congresso na semana passada. O Brasil anistiou, informalmente, ou nem sequer importunou, milhares de invasores de prédios públicos nos últimos anos. Ainda por outro dia li sobre as depredações na Esplanada em maio de 2017. Fui ver as imagens. A turma mascarada, ateando fogo nos ministérios, o quebra-quebra generalizado. No outro dia, “passado é passado”, disse o então presidente Temer. E ninguém basicamente se lembra daquilo. Desta vez não vai rolar. A lógica da guerra e do “risco democrático” ainda rende, para o governo, e será assim até 2026. O país segue dominado pela raiva, e por aí devemos seguir. Ainda nesta semana lia sobre a condenação do Marcelo Lima. Um sujeito de Minas que ficava fazendo selfies nas redes, enrolado na bandeira do Brasil. No dia do “golpe” ele pegou uma réplica da Constituição e a ergueu “como um prêmio”, como se lê na decisão do Supremo. Curioso, pensei. Em vez de tomar o poder, como se faz em um golpe, foi lá tirar mais uma selfie. Três dias depois devolveu o livro, constrangido. Agora é condenado a dezessete anos, nosso estranho golpista.

Na história universal dos golpes, acho que esse será o mais esquisito. O marechal Castello Branco daquele domingo talvez seja a “Fátima de Tubarão”, uma senhora idosa e expansiva. Ela aparentemente não sabia bem como tomar o poder, mas aparece gritando sobre “quebrar tudo!”, em imagens que um dia rivalizarão com aquelas dos tanques adentrando o Rio de Janeiro em 1964. Nossa vovó golpista também pegou dezessete anos. Para “dar o exemplo”, como escutei.

De todos os casos, o que mais me intriga é o de Débora dos Santos. A cabeleireira de Paulínia que escreveu aquela frase, “perdeu, mané”, na estátua de pedra na frente do STF. Ela não invadiu, quebrou ou gritou. Apenas sacou seu batom da bolsa e terminou a frase, com letra de professora. O batom saiu, no dia seguinte, com um pouco de sabão, mas ela continua lá, em um presídio de São Paulo, há coisa de dois anos. Semanas atrás, mandou uma carta para um ministro do STF. Diz que “não sabia da importância da estátua”, que depois foi estudar e viu que ela era de um artista mineiro, o Alfredo Ceschiatti. Anda virando costume, por aqui, cidadãos mandando cartas de arrependimento, pedindo piedade a quem manda. Essas coisas eram comuns na França do antigo regime, mas foram desaparecendo, na república. E jamais deveriam acontecer, por aqui. O caso da Débora me toca, confesso, por causa de seus dois guris, o Rafa e o Caio. Eles estão numa idade em que a mãe faz toda a diferença. E vão crescer sem isso. Até fizeram um vídeo, pedindo sua liberdade, que é duro de ver. Não deu em nada. Desconfio que crescerão com uma tremenda raiva do Brasil. Não torço para que aconteça. Mas, se acontecer, entenderei.

“É da defesa do elo mais frágil que se mostra a força da democracia”

Daria para ir longe com essas histórias, mas a verdade é que faltariam páginas em qualquer revista. De minha parte, acho que essas pessoas deveriam ser julgadas na forma da lei, pelos crimes que de fato cometeram, na instância adequada da Justiça, com amplo direito ao contraditório. Como qualquer brasileiro. E como as coisas devem funcionar em uma democracia liberal. Esse tema voltou com força à minha cabeça assistindo ao filme O Mauritano, dias atrás. O filme é de 2021, mas é atua­líssimo. Ele conta a história de Mohamedou Slahi, um jovem árabe que permaneceu preso em Guantánamo por catorze anos, na onda do combate ao terrorismo, depois do 11 de Setembro. A história é longa, havia indícios contra ele, incluindo uma ligação feita de um telefone de Bin Laden, e isso poderia sugerir muita coisa. Havia uma guerra, os americanos criaram uma lógica de exceção e de “procedimentos especiais” (leia-se: tortura) para lidar com os suspeitos. E era preciso dar respostas à opinião pública. A partir daí, Slahi era o alvo quase perfeito. Só havia um problema: uma advogada chamada Nancy Hollander. Mulher obstinada, ligada aos direitos civis. Ela decide defender o sujeito, percebe que o que existe contra ele é um conjunto de suposições e descobre como ele foi torturado, até assinar uma confissão fantasiosa. Uma década e meia depois, ela ganha o jogo. O próprio promotor do caso, o coronel Stuart Couch, a um certo momento recua. É chamado de “traidor” por um colega de farda, mas não tergiversa: “Não há provas. E todos fizemos um juramento de defender a Constituição dos Estados Unidos”.

Continua após a publicidade

A pergunta crucial do filme: por que cargas-d’água aquela advogada bacana foi gastar seu tempo com um árabe irrelevante, perdido entre centenas de supostos terroristas naquela base fim-de-­mundo de Guantánamo? Resposta: por um conjunto de valores. Porque, se ninguém se preocupar, simplesmente afundamos como uma sociedade de direitos. Pois é da defesa do elo mais frágil, do cidadão mais irrelevante, por vezes o mais odiado, que se mostra a força de uma democracia liberal. Em algumas críticas, li que o filme é um tanto “frio”. Não acho. É exatamente aí que está sua sutil mensagem. A ideia de que não é dos nossos afetos que deve surgir o cuidado com o direito, pois nossos afetos são volúveis. Mas da fidelidade a princípios, cuja guarda no longo prazo é nossa melhor garantia. E nisso o filme pode nos ensinar algumas coisas. Ensinar sobre os riscos da tunnel vision, isto é, da fixação dos julgadores em uma só “narrativa”, deixando de considerar qualquer alternativa (a inocência, por exemplo). Ensinar sobre o absurdo das prisões provisórias sem-fim, usadas para dobrar as pessoas, fazer com que confessem, escrevam ou assinem qualquer coisa. E se arrependam mesmo do erro que não cometeram. Ensinar que todos, mesmo um “terrorista” de Guantánamo, “tem direito a um advogado”, como diz Nancy Hollander em certo momento. E mais: que eventualmente não basta uma estrutura formal de direitos. Mas que é preciso pessoas com um tipo de virtude republicana para fazer valer a regra do jogo. Chama a atenção, no filme, a ideia do “dano colateral”. A causa é boa. Há uma guerra e então é aceitável que alguns acidentes aconteçam. Não faz muito, conversei com uma alta autoridade da República sobre os abusos cometidos no país nos últimos anos. Citei alguns exemplos e ela não discordou. Apenas ponderou que as instituições eram assim. Cumpriam seu papel, mas provocavam lá seus acidentes. Achei aquilo perturbador. Acidentes, nesse caso, são pessoas de carne e osso. A Débora e seus brasileirinhos, o Rafa e o Caio, talvez sejam apenas mais um deles. Há muitos. Nos tornamos, como país, um imenso canteiro de danos colaterais.

O que nos falta são tipos como Hollander e Stuart Couch. Tipos que dizem “não” à lógica sem freios do poder e decidem, com a singeleza devida, respeitar uma Constituição. No fundo, pessoas que se recusem a aceitar a lógica confortável do “dano colateral”. Não acho que seja algo simples, em uma época pautada pela raiva, na qual a política se aproxima da lógica da guerra. E parece invadir todos os aspectos da vida republicana. Mesmo aqueles em que isso jamais deveria acontecer. Como a Justiça.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Continua após a publicidade

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 7 de fevereiro de 2025, edição nº 2930



Leia Mais: Veja

Sair da versão mobile