Ana Pompeu
Idealizador da política de drogas de Portugal, João Goulão defende que a descriminalização é um caminho contra organizações criminosas ligadas ao tráfico, como o PCC (Primeiro Comando da Capital).
O país europeu adotou a descriminalização ainda em 2001, como resposta ao grande número de usuários de heroína. As drogas continuam ilegais, mas pessoas com até 10 doses são consideradas usuárias e não presas —a droga é apreendida e as pessoas, encaminhados para rede de tratamento.
A medida, diz ele, permite que as polícias mudem o foco da atuação. No lugar de combater usuários e procurar distribuidores, podem colocar energia em inteligência para desmantelar grandes organizações.
Goulão entende que o STF (Supremo Tribunal Federal) poderia ter alargado a decisão que descriminalizou o porte de maconha para uso pessoal. À Folha, ele afirma que a decisão da corte foi a possível para o momento, mas que substâncias não deveriam ser diferenciadas.
O que interessa, segundo ele, é o comportamento de quem as usa e o tratamento dado às pessoas.
A experiência em Portugal tem mais de duas décadas. Depois desse período, o senhor avalia que esse modelo seria replicável num país do tamanho do Brasil?
É sempre possível adaptar uma experiência coroada de êxito à realidade de outro país depois de necessárias adaptações. A organização administrativa e as responsabilidades num país da dimensão do Brasil são incomparavelmente mais complexas do que em Portugal. Agora, os princípios fundamentais da política podem perfeitamente ser aplicados: é melhor tratar do que punir, é melhor prevenir do que tratar.
O fato de o Brasil ter fronteiras com países produtores de drogas dificultaria a adaptação?
Creio que não, porque estamos a falar da descriminalização do uso e posse para uso pessoal. Não de descriminalização da grande produção, do tráfico. Em Portugal, manteve-se todos os mecanismos de combate ao tráfico. A proximidade não é o único critério de ameaça.
Na última sexta (8), um empresário foi assassinado depois de ter firmado delação premiada para colaborar com informações sobre o PCC. O Brasil atua na perspectiva da guerra às drogas, de criminalização. O senhor vê relação entre essa abordagem e o poder das facções?
A manutenção de um paradigma estritamente proibicionista contribui para o aumento desses problemas. A redução da oferta e a intervenção das forças policiais são fundamentais para reduzir a disponibilidade e o poderio econômico e, em alguns casos, político de produtores e distribuidores de drogas.
Oferecer tratamento ou alternativas a usuários é um passo crucial para diminuir a importância das drogas na sociedade. Reduzir a procura por via da prevenção, das alternativas de necessidades básicas dos indivíduos para que tenham uma vida mais feliz e com menos necessidade de busca de paraísos sociais, tudo isso é importante para que as nossas cidades sejam mais equilibradas.
O senhor já mencionou a redução da oferta de substâncias na criação do modelo. Como isso tem funcionado?
As autoridades policiais ficaram muito mais liberadas de intervenção junto a meros usuários, que consumia muito tempo e energia, e puderam dirigir a sua atividade para organizações criminosas de maior tamanho, incrementar a colaboração entre os organismos policiais.
Por essa via, em vez de mostrarem o produto das suas apreensões em alguns quilos ou de poucas toneladas, hoje apresentam resultados esmagadores em termos das quantidades apreendidas. Antes, era a partir do consumidor que se encontravam os pontos de fornecimento de drogas, hoje é muito mais com estratégias top-down, acompanhando grandes movimentações de capitais, grandes fortunas etc. É nisto que se traduz tal mudança estratégica.
Em Portugal, houve resistência das forças policiais em relação ao modelo?
Não. No início houve alguma desconfiança. Entretanto, houve alguma renovação até geracional entre os oficiais de polícia e o contato com a experiência bem-sucedida que diminuiu os impactos do uso de drogas na nossa população. A própria eficácia do combate ao tráfico aumentou no contexto da descriminalização. Hoje, as forças policiais são as mais entusiastas na defesa do modelo.
Aqui no Brasil, o STF decidiu apenas sobre a maconha. É um contrassenso lidar apenas com uma substância?
A nossa opção foi diferente. Verdadeiramente aquilo que interessa não é a substância, mas o indivíduo que a consome. Substâncias são isso mesmo, substâncias. O que interessa é o comportamento de quem as usa. Faria sentido que a abordagem fosse alargada. Mas isso depende das avaliações feitas pelas instâncias que têm essa responsabilidade.
Apenas descriminalizar sem legalizar a produção não continua a favorecer o traficante?
Isso é um outro paradigma que tem que estar na equação, o paradigma da apropriação dos circuitos de produção, distribuição, por parte do Estado, ou a regulação do exercício dessa atividade por parte de privados. A substância vem do mercado ilícito, claramente.
Em Portugal, nos primeiros anos, observou-se uma alta aceitação, mas atualmente há questionamentos.
Há mais pessoas na rua fazendo os seus consumos. Isso gera alarme social. Por outro lado, temos presente na sociedade portuguesa, pela primeira vez, forças políticas populistas que exploram, às vezes, os sentimentos mais básicos da população.
Nos primeiros anos da estratégia, houve uma unanimidade quando tivemos diminuição de mortes por overdose, de infecções pelo HIV, uma série de bons indicadores. Depois, fomos confrontados com crises sucessivas que impactaram a vida e a saúde mental dos cidadãos.
Na crise financeira, foram cortes de programas sociais. A Covid-19 despertou muitos consumos problemáticos. A crise da habitação tem impacto também. Há muita gente em situação de rua, com consumo. Adiciona-se ainda à questão uma população migrante muito exposta e fragilizada.
Raio-x | João Goulão, 70
Médico, é idealizador da Estratégia Nacional de Luta Contra a Droga de Portugal. Preside o Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências de Portugal.