Um mundo em que a Aids deixe de ser uma ameaça à saúde pública não é só possível como está no horizonte. É o que aponta o novo relatório da UNAids, programa conjunto da Organização das Nações Unidas (ONU) criado na década de 1990 com objetivo de liderar e coordenar a resposta global à epidemia de HIV/AIDS.
No documento, publicado na terça-feira (26), destaque para a possibilidade de alcançar essa realidade até 2030. Mas há uma condicionante: para isso, as lideranças precisam proteger os direitos humanos de todas as pessoas que vivem com HIV e daquelas mais expostas ao risco de infecção pelo vírus.
A expectativa pela superação da Aids enquanto ameaça à saúde pública, contudo, não significa que haja pouco trabalho pela frente. Segundo o mesmo relatório, o cenário está ainda longe do ideal: globalmente, das 39,9 milhões de pessoas vivendo com HIV, cerca de 23% (9,3 milhões) não acessam o tratamento antirretroviral – que impede a manifestação sintomática do vírus, além de evitar sua transmissão.
Dados apurados pela UNAids indicam ainda que, em 2023, 630 mil pessoas morreram por doenças relacionadas à Aids, e 1,3 milhão de pessoas em todo o mundo testaram positivo para o HIV. Além disso, em 28 países, o número de novas infecções está aumentando.
O Brasil, por sua vez, alcançou, com dois anos de antecedência, duas das três metas propostas pela ONU visando a eliminação da Aids como problema de saúde pública. São elas: ter 95% das pessoas vivendo com HIV diagnosticadas; ter 95% dessas pessoas em tratamento antirretroviral; e, dessas em tratamento, ter 95% em supressão viral, ou seja, com HIV intransmissível. Hoje, em números gerais, o Brasil possui, respectivamente, 96%, 82% e 95% de alcance.
Em 2023, o Ministério da Saúde já havia anunciado o cumprimento da meta de pessoas com carga viral controlada. Agora, novos dados do relatório da UNAids mostram que, no ano passado, o Brasil subiu seis pontos percentuais na meta de diagnóstico de pessoas estimadas a serem infectadas por HIV e que não sabiam da condição sorológica, passando de 90% em 2022 para 96% em 2023.
É nesse contexto que o Ministério da Saúde lança a nova campanha de conscientização, com o tema “HIV. É sobre viver, conviver e respeitar. Teste e trate. Previna-se”. Uma sensível mudança de abordagem em relação ao tom adotado no passado, que se impregnou no imaginário popular, quando o enfrentamento à Aids era pautado pelo medo, não pelo acolhimento.
Desta vez, aliás, de forma inédita e alinhada a esse novo viés, o governo federal vai lançar campanhas de conscientização indicando que “i é igual a zero”, ou seja, quando o HIV fica indetectável, há zero risco de transmissão.
Especialista indica que acolhimento é o caminho
A série de anúncios foi feita pela ministra da Saúde, Nísia Trindade, na quinta-feira (28), durante a reunião da Comissão Intergestores Tripartite (CIT). O tom das medidas anunciadas estão em sintonia com apontamentos de estudiosos do tema, como o médico infectologista Unaí Tupinambás, professor titular do departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (FM/UFMG).
Para o profissional da saúde, entre os principais desafios enfrentados por pessoas vivendo com HIV em termos de saúde física e mental estão os persistentes estigmas e preconceitos sociais que recaem sobre elas.
A falta de acolhimento, diz, impacta na adesão, retenção e vinculação destas pessoas ao cuidado, sendo uma das principais causas de abandono do tratamento. “Lembro que no Brasil a grande maioria das PVHIV (sigla para Pessoas Vivendo com HIV) com que estão em uso dos medicamentos antirretrovirais apresentam ótima resposta, ficando com carga viral indetectável, o que significa que, além de não ter sintomas, elas não transmitem o vírus”, reforça.
Unaí Tupinambás defende que, além das campanhas de conscientização nas mídias, o estigma associado ao HIV deve ser combatido com educação desde o ensino fundamental. “Temos uma ferramenta importantíssima para este combate que é o Programa Saúde na Escola, uma parceria das Unidades Básicas de Saúde (UBS) e as Escolas dentro do território desta UBS que deveria ser ativada de forma efetiva por todos os governantes”, explica.
Em outra frente, pensando no suporte a PVHIV, ele sustenta que são necessários investimentos e recursos adequados para as políticas do Sistema Único de Saúde (SUS), ampliando o acesso aos cuidados de saúde, eliminando as barreiras programáticas e não programáticas de acesso, qualificando e atualizando as equipes de saúde. O médico ainda destaca que, hoje, no país, todas as pessoas que vivem com HIV são tratadas com esquema de um ou dois comprimidos ao dia, que são fornecidos pelo SUS. “Este tratamento é altamente eficaz e com ótima tolerância. Ou seja, apresenta poucos eventos adversos”, assinala.
O mandala da prevenção
Quando o tema é prevenção a novas infecções pelo HIV, Unaí Tupinambás lembra que, hoje, fala-se na “Mandala de Prevenção” ou “Prevenção Combinada”, método que inclui vários tipos de intervenção. “Esta abordagem é o conjunto de ações de prevenção ao HIV e também a outras infecções sexualmente transmissíveis (ISTs). E esta nova abordagem abre um leque de escolhas para as pessoas”, descreve.
Além do incentivo ao uso de preservativo, há, por exemplo, a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), destinada a pessoas que têm um risco aumentado para a infecção pelo HIV, chamadas de população chave, conforme explica o infectologista.
Ele detalha que o método pode ser contínuo, com o indivíduo tomando um comprimido por dia, ou sob demanda, quando os comprimidos são tomados apenas no período em que a pessoa vai manter relação sexual. “O método é seguro e também eficaz na prevenção ao HIV”, detalha, lembrando que desde novembro, o PrEP está disponível em todas as Unidades Básicas de Saúde do SUS em Belo Horizonte.
Já em relação a PEP ela é usada após exposição de risco, por exemplo, em casos de estupro ou quando a camisinha rompe ou mesmo após acidente profissional com material biológico.
Segundo o Ministério da Saúde, aliás, o aumento do diagnóstico das pessoas estimadas de serem infectadas por HIV que não sabiam da condição sorológica só foi possível graças à expansão da oferta da PrEP , uma vez que para iniciar a profilaxia, é necessário fazer o teste.
Com isso, mais pessoas com infecção pelo HIV foram detectadas e incluídas imediatamente em terapia antirretroviral. O desafio agora, indica a pasta, é revincular as pessoas que interromperam o tratamento ou foram abandonadas, muitas delas no último governo, bem como disponibilizar o tratamento para todas as pessoas recém diagnosticadas para que tenham melhor qualidade de vida.
DEPOIMENTO
Sóstenes Reis, 36, doutorando em comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que usa o PrEP desde janeiro de 2023
Eu tomo PrEP há quase dois anos, desde janeiro de 2023. Na verdade, me cadastrei para receber os comprimidos em 2022, porque tinha ficado solteiro e achei seguro aderir a profilaxia prévia. Mas, na época, a fila do SUS em BH estava grande e precisei esperar sete meses por uma ligação de um número desconhecido até ser chamado.
Logo no começo, já me adequei bem. Não tive nenhum efeito colateral e gostei da rotina de monitoramento associada ao uso do PrEP. Os exames são realizados no início, quando você faz uso no primeiro mês, e depois, com um acompanhamento que prevê exames a cada quatro meses. Além disso, ao retirar os comprimidos, recebemos também autotestes de HIV para serem feitos em casa mensalmente, a partir de amostras da saliva.
A PreP funciona como um método prévio de profilaxia que te protege do contato com o vírus do HIV – e somente deste vírus. Porém, essa rotina de exames envolvendo todas outras ISTs acaba te protegendo, ainda que a PreP te proteja só do HIV. Eu gosto muito disso. Eu gosto desses esquema porque me sinto seguro na minha vida sexual e afetiva, sinto que, ao me proteger, estou protegendo o outro.
Eu faço o tratamento no Hospital Eduardo de Menezes, no Barreiro. E ali tem uma equipe muito boa, atenta e acolhedora, que monitora seus exames de fígado, sangue, urina, fezes… Lá, eu me sinto bem, me sinto acolhido. E não só lá. Nos Centros de Testagem (CTAs) da Prefeitura de Belo Horizonte, que estão espalhados pela cidade, eu também recebo um atendimento acolhedor, com profissionais muito preparados, que desmistificam e naturalizam as práticas sexuais e as possíveis contaminações que essas pessoas podem vir a ter.
A PreP pode ser tomar diariamente ou sob demanda. No período que fiquei em BH, eu tomava os comprimidos todos os dias. E, atualmente, como estou morando em Salvador, estou tomando sob demanda. A diferença é: você toma a PrEP diariamente quando não sabe exatamente quando vai ter atividade sexual, enquanto o uso sob demanda é indicado quando a atividade sexual está menos intensa. Nesse caso, tenho ingerido os comprimidos mais no fim de semana ou próximo de uma situação em que vou ter uma relação. É interessante falar sobre isso porque a PrEP age 24 horas antes de qualquer atividade sexual. Então, se pode acontecer algo no fim de semana, por exemplo, começo a tomar na quinta e vou parar no domingo.
E usar a profilaxia prévia não quer dizer que eu não use preservativo. A questão é que acho muito complicado, quando a gente fica falando de proteção, ficarmos restritos a apenas um método. Afinal, a gente precisa se proteger, mas há uma série de práticas sexuais em que não temos hábito de usar preservativo, como no sexo oral. Eu conheço pouquíssimas pessoas, ou talvez nenhuma, que usa preservativo no sexo oral. Inclusive, fico muito preocupado por amigas heterossexuais que nunca fazem nenhum teste (relacionado a ISTs) e deixam de usar preservativo por pensarem que essa é uma questão gay, uma questão LGBT.
Hoje, eu acho mais seguro transar com uma pessoa que tem HIV e faz tratamento, ficando com o vírus indetectável e, portanto, não transmissível, ou com uma pessoa que usa a PrEP, porque você sabe que essas pessoas estão em tratamento e se protegendo continuamente. Eu, aliás, já tive conversas assim com pessoas que me relacionei, com pessoas que já fiquei ou que fico, e foi tranquilo. Acho que o caminho, para lidar com qualquer tipo de questão sexual e afetiva, é mesmo o diálogo.
A grande questão atual, na minha opinião, passa pela necessidade de que, tanto a PrEP quanto outras políticas públicas de saúde sexual do SUS, cheguem a mais pessoas, cheguem às populações de classe C, D e E, porque a impressão que tenho, das conversas que tenho com amigos e com profissionais de saúde que atendem nos CTAs, é que a profilaxia prévia, por exemplo, chega muito mais na classe média LGBT.