[RESUMO] Recém-lançado nos EUA, o documentário “War Game” propõe a políticos, estrategistas e militares um desafio hipotético que hoje soa assustadoramente real: como salvar a democracia no EUA e garantir a transição de poder se um candidato derrotado à Presidência incentivasse um golpe de Estado —e contasse com o apoio das Forças Armadas?
Em 6 de janeiro de 2021, uma multidão de apoiadores do então presidente republicano Donald Trump invadiu o Congresso norte-americano, em Washington, na tentativa de impedir a ratificação da vitória do democrata Joe Biden nas eleições à Presidência do país.
Incitada pelo próprio republicano, que se recusava a admitir derrota e bradava que o pleito havia sido “fraudado”, a turba causou a fuga de políticos, causou mortes e vandalizou o prédio histórico em um ato de horror inédito na história recente dos EUA.
Os insurrecionistas foram reprimidos e debelados com a ajuda da Guarda Nacional, tropas locais de segurança e a polícia. Mas o que aconteceria se, em um futuro hipotético, embora não muito distante, os militares, em vez de defenderem o governo eleito norte-americano e sua democracia, ficassem do lado do candidato derrotado e participassem ativamente do golpe de Estado no país?
É o que pergunta o tenso documentário “War Game” (“Jogo de Guerra”, em tradução livre), dirigido por Jesse Moss e Tony Gerber. Lançado em circuito limitado em agosto passado nos cinemas norte-americanos e ainda inédito no Brasil, o filme é uma espécie de psicodrama protagonizado por militares aposentados, oficiais da inteligência e políticos republicanos, democratas e independentes que fizeram parte dos cinco últimos governos.
Nesta situação hipotética, eles precisam encontrar uma maneira de garantir uma transição de poder da forma menos traumática possível após o candidato ficcional à Presidência Robert Strickland (interpretado pelo ator Chris Coffey) não admitir a derrota nas urnas e insuflar seus apoiadores —entre eles, militares— a não reconhecer o novo governo.
Resumindo: o grupo deve encontrar uma solução firme e com bases legais, mas que não dê início a uma nova guerra civil nos Estados Unidos —coincidentemente, cenário de outro longa recente, “Guerra Civil”, sucesso de bilheteria dirigido por Alex Garland e protagonizado por Kirsten Dunst e Wagner Moura.
Origem da experiência
A semente do projeto começou fora da indústria cinematográfica. A Vet Voice, uma organização encarregada de recolocar ex-militares na posição de “líderes civis”, inspirou-se no artigo do jornal The Washington Post no qual três generais fora da ativa pedem para o Departamento de Defesa norte-americano avaliar o cenário de guerra interna movido por uma iminente tentativa de golpe ou insurreição com suporte das Forças Armadas.
Paul D. Eaton, Antonio M. Taguba e Steven M. Anderson vão mais longe no texto publicado em dezembro de 2021. Os oficiais de reserva de alta patente explicam que o Exército do país reflete sua sociedade e que, assim como ela, abrigaria elementos antidemocráticos radicais.
“Os sinais de uma possível turbulência nas nossas Forças Armadas estão visíveis”, escreveram eles, citando que o ataque ao Capitólio teve a presença de muitos veteranos e membros ativos do Exército, além de um grupo de militares reformados autodenominado Flag Officers 4 America (Oficiais da Bandeira pelos EUA) espalhando as mentiras do ex-presidente sobre a ilegitimidade das eleições.
Insatisfeita com a pouca ação do governo, a Vet Voice gostou do pedido dos generais da reserva e organizou o próprio Role-Playing Game, um jogo em que seus participantes fingem ser personagens fictícios baseados em atributos estabelecidos.
De um lado, o presidente democrata fictício reeleito John Hotham, interpretado por Steve Bullock, ex-governador do estado do Montana, e sua equipe na Casa Branca buscam a transição pacífica de poder. Do outro, insurgentes integrantes da também fictícia Ordem de Colombo convocam os “verdadeiros patriotas”, inclusive militares, a se rebelarem contra o que consideram uma eleição ilegítima.
O exercício proposto pela organização tem o objetivo de encontrar as fraquezas no sistema político norte-americano e preparar melhor as autoridades para uma crise de tal escala —os dados finais foram entregues ao Departamento de Defesa.
Os diretores Gerber e Moss, que já tinham experimentado formato similar no documentário “Full Battle Rattle”, sobre uma cidade cenográfica iraquiana construída no deserto do Mojave para treinar soldados norte-americanos, procuraram a Vet Voice para formar uma parceria.
“Aquele filme e a experiência imersiva que lidava com uma história igualmente complexa e politicamente relevante sob uma perspectiva incomum nos convenceu que poderíamos construir uma colaboração diretorial similar”, disseram os cineastas em declaração à imprensa. “Tínhamos a confiança e compartilhávamos uma visão criativa do que o longa poderia ser e falar sobre esse momento delicado na história do nosso país.”
A dupla recebeu o convite para incrementar a simulação realizada em 6 de janeiro de 2023 e filmar as seis horas de atividade —para editar posteriormente na 1h30 de duração do que se tornaria “War Game”. Eles trouxeram um diretor de arte de peças da Broadway para replicar os cenários da “sala de crise” da Casa Branca, o salão de imprensa da Presidência e o quartel-general dos inimigos. Os cineastas acreditavam que a verossimilhança ajudaria a extrair performances mais realistas dos envolvidos pouco familiarizados com a dramaturgia.
O resultado é um documentário tão envolvente quanto assustador que não se prende apenas ao formato teatral da experiência. Traz diversas sequências reais da invasão ao Capitólio e também faz questão de desvendar a biografia de vários “atores”. Caso de Kris Goldsmith, veterano militar especializado nos estudos de desinformação e movimentos de extremistas internos, que assume o papel de líder da Célula Vermelha, responsável pela tentativa de impedir a ratificação do presidente eleito.
Os organizadores do “jogo de guerra” alimentam a equipe da Casa Branca com notícias em tempo real sobre generais se rebelando contra o governo federal, governadores negando apoio ao político eleito, membros da Guarda Nacional tomando partido dos extremistas e a multidão cercando o Congresso. A responsabilidade dos nomes por trás deste “Show de Truman político” é aumentar a tensão de um possível golpe militar sem cair na fantasia.
Por outro lado, os jogadores do lado da democracia debatem e analisam a maneira mais realista e pacífica para contornar a situação no tempo estabelecido. E eles recorrem ao seu currículo e a sua experiência para solucionar o quebra-cabeça.
Por exemplo, Elizabeth Neumann, vice-chefe de gabinete do Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos durante o governo Trump, ganha a função de conselheira de segurança interna no projeto. Um agente da CIA tem a oportunidade de viver o diretor da Inteligência dos EUA. “War Game” ainda possui ex-senadores, membros do serviço secreto, porta-vozes, militares, assessores políticos e jornalistas nos seu elenco.
Os diretores dizem que a senadora democrata Heidi Heitkamp, que assume o papel de assessora direta do presidente em “War Game”, define o projeto como “lição básica de prevenção a golpes”. Uma das lições levantadas pelo filme é como impedir um golpe sem criar nenhum mártir com a mensagem errada, que apelasse para respostas radicais.
A equipe da Casa Branca de mentirinha é seduzida diversas vezes pela possibilidade de adotar a Lei da Insurreição, que dá poderes plenos ao presidente dos EUA para usar as Forças Armadas dentro do país. Seria um ato de desespero sem vitória, como faz questão de lembrar um dos insurgentes da Ordem de Colombo, já que a imagem das tropas norte-americanas abatendo os próprios cidadãos poderia ser o estopim de uma guerra civil.
Uma falha de “War Game” é se concentrar nas consequências de um levante militar nos Estados Unidos sem contextualizar o evento fictício com a ação do país em outros casos semelhantes fora das suas fronteiras.
O longa só não pode ser acusado de fantasioso na sua projeção de uma transição de poder ainda mais conturbada em janeiro de 2025. Em julho passado, durante a companha presidencial, o candidato republicano Donald Trump discursou para líderes cristãos na Flórida: “Saiam e votem. Em quatro anos, vocês não precisarão votar de novo. Nós vamos consertar tudo tão bem que vocês não precisarão votar”. A realidade pode ser bem mais assustadora que qualquer drama.
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