Em três dias, descobri quatro formas de usar a cafeteira elétrica do modo errado.
Da primeira vez, não percebi que havia derrubado a cestinha que serve como filtro no chão e coloquei o pó direto no plástico da máquina. Tomamos um café saboroso, mas arenoso.
Da segunda, esqueci de tirar a tampa furadinha do copo que recebe a bebida. Metade do café escorreu sob a bancada.
Minha terceira tentativa frustrada não criou tanto problema. Enchi o copo de água e esqueci de despejá-la na máquina. Em vez disso, coloquei o copo cheio no suporte por onde cairia o café pronto e liguei o aparelho. Fui tomar meu café quentinho e bebi um gole de água gelada.
Na última, porém, o trauma foi maior. Esqueci de fechar a tampa da máquina antes de acioná-la. Saí da cozinha. A água ferveu e foi esguichada para todos os lados.
Eu poderia falar também de copos e pratos quebrados, comida queimada, fruta esquecida em cima da mesa e estragada e muitos outros motivos que poderiam ter levado ao fim desse projeto de morar junto com minha noiva, também cega.
Mas nem só de louça quebrada e cozinha suja se faz a união de duas pessoas com deficiência visual. Quando coloco a camiseta preta no cesto de roupas brancas da lavanderia, ela respira fundo e repete dez vezes para si mesma que tudo é questão de aprendizado e paciência.
Nunca morei sozinho e tive sempre por perto pessoas que enxergavam, prontas para ajudar nas tarefas da casa. Mesmo quando quis aprender a lavar um banheiro ou passar uma camiseta, também faltava aos meus familiares expertise para ensinar cumprir essas tarefas sem precisar dos olhos.
Agora, em casa com duas pessoas cegas, as tarefas são divididas e a organização é a lei.
Como não vemos, saber onde tudo está é o mais importante para não perdermos tempo procurando com as mãos escova de cabelo, casaco ou carregador de celular o dia inteiro em meio ao caos.
Na geladeira, cada prateleira tem uma função. Há lugar pra frios e manteiga, para bebidas e frutas. Cada tipo de roupa fica em um canto do armário, com espaços reservados para camiseta e camisa de fazer esporte, de trabalhar e de sair.
Também preciso estimular mais os sentidos, em especial o tato e o olfato. Afinal, se não for pegando e sentindo o cheiro, posso não saber se um pote contém açúcar, sal, farinha ou aveia.
Talvez seja particularidade daqui de casa, mas meu tato também precisa ser desenvolvido para que não fique nenhum grão de pó ou gota d’água sobre a pia após lavar a louça, nível de limpeza ao qual não estava acostumado. Geralmente consigo aprovação após a terceira inspeção dela, mais experiente e acostumada a morar só há mais tempo.
Para aquilo em que as mãos ou o olfato não são suficientes, a tecnologia vem solucionando muitos desafios da vida independente de pessoas cegas. Aplicativos como Seeing Ai ou Be My Eyes permitem ler rótulos de produtos e também identificar as cores de objetos, inclusive ajudando na hora de combinar a roupa para sair.
Mesmo com todos esses desafios, a convivência é harmoniosa. Inclusive as trombadas no corredor ou na sala dos primeiros dias terminaram. Tal qual atletas de futebol de cegos, aqui é regra sempre avisar antes de atravessar a casa, que já sentimos ser nosso lar e onde já passo um café delicioso todas as manhãs.
Warning: Undefined variable $user_ID in /home/u824415267/domains/acre.com.br/public_html/wp-content/themes/zox-news/comments.php on line 48
You must be logged in to post a comment Login