Em 1976, a escritora Anne Rice lançou um livro que foi um grande best-seller, “Entrevista com o Vampiro”, que virou um filme com Tom Cruise e Brad Pitt.
Essa lembrança me levou a fazer uma entrevista com alguém que muita gente acha que está sugando o sangue da democracia, o desconhecido senso comum. Para a elite intelectual do mundo, essa entidade estranha habita as noites escuras da ignorância. O objetivo é eliminá-lo da face da Terra, pois ele é uma ameaça à racionalidade política herdeira das luzes. O senso comum é a sombra da modernidade iluminista.
Nossa conversa durou cerca de três horas, mas vou transcrever aqui só alguns momentos. Convidei-o para tomar um vinho, mas, ele não bebe vinho, nem entende nada de vinho. Mas devemos reconhecer que ele não sofre do mal dos inteligentinhos —que não curte cheiro de povo— que é ser afetado no que concerne a vinhos. Conselho: não fale de vinhos, beba em silêncio.
A primeira coisa que perguntei foi o que ele considerava o mais importante na sua vida. A resposta foi “minha família, que meus filhos não usem drogas e Deus”. Venhamos e convenhamos, uma resposta assaz estranha para nós da elite. E continuou: “que meus pais tenham sido pessoas honradas e que nunca eu tenha tido ladrões na família”. Quer coisa mais pequeno-burguesa do que querer pensar que seus pais tenham sido pessoas “honradas”? O que vem a ser isso, exatamente?
Perguntado sobre qual a causa que ele apontaria como razão para alguém virar criminoso, respondeu: “Tem gente que nasce assim, não presta”. Movido por longos anos de apelo à desigualdade social como causa da criminalidade, tentei encurralá-lo: o senhor não acha que a pobreza é a causa principal da criminalidade? Visivelmente ofendido —nunca pensei que uma pergunta “técnica” como essa ofendesse alguém— “minha família sempre foi pobre, e nunca teve nem um ladrão sequer, ladrão é ladrão porque não presta!”.
Engatei numa questão quente e relacionada ao tema aqui lembrado: você é a favor da saidinha?
“Esse governo adora bandido, esse povo dos direitos humanos adora bandido, essa saidinha é uma desculpa para soltar bandido na rua; se esse governo tivesse que escolher entre os bandidos e as pessoas honradas —lá vem essa estranha palavra de novo—, ele escolheria que o bandido ficasse livre e que matasse o trabalhador.” Perguntei na lata: o que você pensa da Polícia Militar? “Necessária. Ruim com eles, pior sem eles.”
O que o senso comum pensaria se o Brasil fosse invadido por imigrantes ilegais que tomassem o trabalho dele ganhando menos? “Que o governo mandasse eles de volta de onde vieram; aqui é minha casa.”
Vamos ver o que ele disse sobre educação dos filhos. Perguntei a ele sobre o que pensava de uma professora dar aulas para seus filhos adolescentes sobre a existência de uma diversidade de gêneros muito maior do que mulher e homem. “Iria à escola brigar com a professora! Ela está querendo fazer do meu filho gay e da minha filha lésbica? A humanidade está dividida em mulher e homem, só um tarado pedófilo pode falar dessas coisas para crianças na escola! Que ninguém se meta no sexo dos meus filhos.”
Continuei no assunto. O que você acharia de a escola levar seus filhos para conhecer a vida na favela? “Esta escola quer levar meus filhos para o meio do crime?”
Avancei: e o casamento de pessoas do mesmo sexo? “Um absurdo! Casamento é entre homem e mulher e pronto.”
Querendo aprofundar ainda mais essa homofobia do senso comum, fui adiante: e adoção de crianças por casais do mesmo sexo? “Um crime! Essa criança, coitada, não vai saber fazer a diferença entre o certo e o errado.”
Buscando o xeque-mate no assunto: você não acha que você é muito homofóbico? Não pense que o senso comum não conhece palavras da moda. Resposta direta: “Não tenho medo de nada, só acho que cada um é cada um e que esse povo tenta fazer todo mundo ficar igual a eles, para dominar o mundo; para todo lugar que você olha, só tem artista da Globo e jornalista dizendo que gay é lindo e que pessoas normais são ruins”.
Sim, ele usou “pessoas normais”. Continuei: você não tem medo de ser processado por falar “pessoas normais”? “Não, porque vivemos numa democracia, e numa democracia o povo tem o direito de falar o que quiser e votar em quem quiser.” Pensei comigo: pobre senso comum, como pode ser tão ingênuo no século 21?
E o que você acha que seria um mundo ideal? “Um mundo em que não roubassem meu celular, não me matassem na rua e sem corrupção.” Que falta de imaginação! Esse senso comum é mesmo uma ameaça à democracia.
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