Raro abrir uma página ultimamente sem deparar com o trocadilho “escreviver”, usado para definir o trabalho de alguém —quase sempre de origem pobre ou atribulada, que foi salvo pelo fato de escrever. Donde “escreviver” é uma redenção, além de, pelo visto, algo muito original dada a quantidade de escritores que disputam a sua prática ou criação do termo. Não sei bem o que há de original em “escreviver”, mas posso garantir que seu uso não é de hoje.
O poeta e jornalista carioca José Lino Grünewald (1931-2000) já o empregou em 1965, num texto em que resumia seu cotidiano: “Viver/ escrever/ escreviver”. Depois, num poema concreto, em 1968, ampliou o mote para “Ver/ viver/ rever/ reviver/ escrever/ escreviver” e fez dele o poema-título de seu livro “Escreviver”, de 1987, com várias reedições. O termo foi também título de uma coletânea póstuma de seus artigos, “O Grau Zero do Escreviver”, organizada por José Guilherme Corrêa, em 2002, pela Perspectiva. Para mim, portanto, “escreviver” saiu de meu amigo e mestre José Lino, e sei que
ele nunca achou isso algo do outro mundo.
Mas é fatal. De repente, certas expressões entram em circulação no meio cultural e são adotadas como se definissem o jamais sonhado ou dito. Outra delas, mais recente, é “autoficção”.
O que será? Uma ficção autobiográfica? Uma autobiografia ficcional? Nenhuma das duas opções? A palavra parece ter sido cunhada pelo francês Serge Dubrovski, para explicar um de seus romances. O fato é que pegou e passou a definir o estilo de autores internacionais, como a também francesa Annie Ernaux, o português Antonio Lobo Antunes, o indiano Chary Niveditar, a japonesa Hitomi Kanehara e uma plêiade de brasileiros.
Mas, além do significado de “autoficção”, o que me pergunto é o que ela tem de novidade. Sempre achei que, em maior ou menor escala, todo ficcionista se coloca nas histórias que inventa. Aprendi isso ao ler a frase de Gustave Flaubert, em 1857, ao desmentir que sua Madame Bovary fosse inspirada em certa senhora. “Emma Bovary sou eu”, disse Flaubert. E pensou ter encerrado o assunto. Que nada.
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