Perto demais
Quando eu e uma colega fomos à casa da professora Elza Maria Miranda Afonso para convidá-la para ser paraninfa da nossa turma de direito na UFMG, ouvimos histórias de seus anos de faculdade. Ela foi aluna de Edgar de Godói da Mata-Machado, cujo filho, José Carlos Novaes da Mata Machado, foi torturado e morto por agentes do Estado durante a ditadura.
Quando Elza perdeu seus pais, Edgar perguntou a ela como estava lidando com seu luto: “sabe, Professor, eu tento viver e agir como se eles estivessem presentes”. “Eu também tento me conduzir pensando na aprovação do José Carlos”, ele respondeu.
José Carlos foi contemporâneo de Elza na faculdade de direito, mas nunca se formou. Enquanto a turma recebia os diplomas, ele estava preso. Seu pai foi um dos Paraninfos daquele ano de 1968, mesmo ano em que teve o mandato de deputado federal cassado com base no AI-5. Oito meses depois, Zé Carlos foi liberado. Novamente preso, em outubro de 1973, foi torturado até a morte.
Daquele dia na casa da Elzinha, não me lembro de nenhuma dessas informações, apenas do sentimento que nos unia: o horror à ditadura. Era julho de 2007 e, naquele momento, não imaginávamos que, nove anos depois, um futuro presidente exaltaria torturador em uma sessão da Câmara dos Deputados. Ou será que imaginávamos?
Cinco anos depois, Elzinha estava na minha banca de mestrado. Fiquei emocionada com a emoção dela. Eu falava sobre nazismo. E sobre como o autoritarismo está sempre perto demais.
Onde eu estava?
O livro “Ainda estou aqui”, de Marcelo Rubens Paiva, é um registro histórico. Pouca gente vai ler o relatório da Comissão Nacional da Verdade, que demonstrou, com base no acervo pessoal do coronel Júlio Miguel Molinas Dias – assassinado em 2012 em circunstâncias suspeitas – e nos testemunhos da ex-presa política Cecília de Barros Correia Viveiros de Castro e do ex-tenente médico do Exército Amílcar Lobo, que Rubens Paiva foi preso pela Aeronáutica e morto sob tortura no DOI-Codi (Departamento de Operações de Informação do Centro de Operações de Defesa Interna), centro que concentrava a repressão aos adversários do regime. Muitos lerão trechos importantes desse relatório em “Ainda estou aqui”.
No livro de Marcelo, existem nomes. Os nomes daqueles que, cinco décadas depois, seguem impunes.
O filme homônimo, que assisti na última semana com a minha mãe, parte da falta desses nomes e de suas responsabilizações. É um grito de desespero por memória, uma memória que podemos perder em breve caso não nos mobilizemos, junto dos museus, memoriais e monumentos que nunca criamos.
Minha mãe, em dificuldade de mastigar suas pipocas, pergunta, mais para si mesma do que para mim, onde estava que não viu aqueles tanques nas ruas do Rio de Janeiro. “Eu ia sempre lá no Centro, na rua da Alfândega”. Será que não viu, mãe? Ou não se lembra mais?
O que a gente não preserva a gente esquece. E quando a gente esquece, aumentam as chances de repetirmos, por pior que seja o que tenha acontecido.
Em 2019, apresentei um projeto de pesquisa de pós-doutorado na Alemanha perante a Capes. Pretendia “testar a hipótese de que a experiência alemã pode ajudar a estipular atitudes mínimas necessárias para preservação da democracia – tais como leis que punam a negação do passado e forcem o Estado a educar sobre crimes cometidos por ele mesmo e a preservar esse conhecimento por meio de espaços permanentes de memória (monumentos, museus, exibições) – e se isso é aplicável ao Brasil”.
Não consegui a bolsa que pleiteava, o que não chegou a ser uma surpresa. O texto do meu projeto começava da seguinte forma: “Nunca houve um fechamento sobre como o Brasil deve lidar com a tortura e as execuções praticadas durante sua ditadura militar. Mais do que isso, sentimentos de nostalgia por esse período e mesmo sua negação como um regime antidemocrático tornam-se mais e mais frequentes. O tema ganhou maior evidência em 2016, durante o processo de impeachment da ex-presidente Dilma Roussef, quando, em um discurso de menos de 10 segundos, o atual presidente, Jair Bolsonaro, louvou um torturador responsável por torturas e assassinatos durante a ditadura”.
Quem assumiu a responsabilidade pelos crimes praticados durante a ditadura foi o Estado Brasileiro. Todos nós, até hoje, pagamos por isso. Não que devêssemos ser poupados. Faz parte do processo de redemocratização entender como as coisas chegaram aonde chegaram e como a coletividade deixou que chegassem até lá.
É um exercício que todos deveríamos fazer, especialmente aqueles que já haviam nascido na década de 1960. Como minha mãe se perguntou, todos deveriam se perguntar. Onde eu estava? O que eu via? O que meus pais faziam?
Mas existe, deveria existir, uma diferenciação sólida entre o que respondemos por ser parte de uma sociedade, e o que são nossas decisões e atos individuais. O que fizemos por imposição de um regime que nos ameaçava e o que se fez por vontade. E isso a gente não tem. No lugar de culpados, temos “a ditadura” como um grande monstro abstrato.
Ditadura não mata ninguém
Rubens Paiva não morreu pelas mãos de um grande monstro abstrato, mas porque pessoas o mataram. Pessoas o torturaram até a morte. E nós precisamos dos seus nomes.
O filme “Ainda estou aqui” nos pega tanto, porque fala de pessoas reais. De crianças reais que não tiveram oportunidade de se despedir do pai. Nunca tiveram. Não fizeram velório, nem mesmo choraram a perda juntas, porque, para cada uma, a morte chegou em um momento diferente.
A gente não se comove tanto por rostos desconhecidos e sem nome, assim como não se indigna o suficiente contra um monstro abstrato. Ditadura não mata ninguém. Pessoas matam.
Muito já se falou sobre como o filme é feito de silêncios e do pavor que paira no ar quando nada é dito. Dos traumas. Ditaduras se firmam no medo.
Mas democracias também. Enquanto assistia, ficava me perguntando quão diferente é o que tantas famílias negras passam todos os dias. Pensei em uma frase que escrevi num dos meus primeiros textos aqui no Morte sem Tabu, quando o adolescente João Pedro foi executado pela polícia no Rio de Janeiro – polícia que, por sinal, foi recentemente absolvida: “A família de João Pedro passou a noite procurando por notícias suas. Ele já estava morto. A polícia já sabia que ele estava morto. Mas a família continuava procurando por ele”.
Sim, eu sei que é diferente. Pessoas negras e pobres morrem todos os dias mesmo quando não estão lutando por um projeto melhor de país, mas apenas tentando existir.
Nunca estivemos tão perto
Talvez um dia eu escreva sobre o que senti quando li o nome João Paulo Burnier* na página 36 do livro de Marcelo Rubens Paiva. Até alguns anos atrás, eu só o conhecia pelo nome de “brigadeiro”, alguém de quem eu ouvi falar desde a infância. Alguém que, depois de comandar o lugar onde Rubens Paiva sofreu as primeiras torturas, depois de comandar o lugar onde foi torturado até a morte Stuart Angel, depois de planejar um ato que levaria à morte de milhares de pessoas – para que a culpa recaísse sobre os “comunistas”-, tornou-se apenas mais um cidadão no Rio de Janeiro, vivendo a própria vida, como tantos. Convivendo, quem sabe, até mesmo com famílias de suas próprias vítimas. Alguém que estava perto demais da minha família. Mas essa é outra história.
Por mais força que o audiovisual tenha sobre nós, e que bom que tem, enaltecer um filme e suas atuações é pouco. É muito pouco. Por mais que os olhares de Fernanda Torres e Fernanda Montenegro, esse monumento que consegue se tornar tão marcante em poucos minutos de atuação sem fala, precisamos entender por que o filme nos toca exatamente onde toca. Nós nunca estivemos tão perto de repetir o passado. E, pelas últimas notícias, é por pura sorte que não estamos de volta ao Ato Institucional nº 5, de 1968.
*Embora no livro conste o nome de João Paulo Penido Burnier, o brigadeiro, filho de Otávio Penido Burnier e Margarida Moreira Penido Burnier, assinava como João Paulo Moreira Burnier.
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