[RESUMO] Com mais de 300 obras, exposição no Museu do Louvre apresenta um inventário das representações artísticas do louco, figura que diverte, se perde em desvarios de amor e contesta a ordem social estabelecida, e interroga os significados da loucura desde o fim da Idade Média e sua importância na transição para a modernidade.
“De médico e louco todo o mundo tem um pouco” é uma frase muito conhecida e ecoa o enredo de “O Alienista“, de Machado de Assis. Na obra, o personagem Simão Bacamarte, o médico da pacata cidade de Itaguaí, decide internar quase toda a população no seu manicômio recém-inaugurado, a Casa Verde, até entender que seu método terapêutico estava completamente errado.
Na verdade, Bacamarte consideraria pouco tempo depois, os verdadeiros loucos seriam aqueles que não demonstravam nenhum sinal ou grau de perturbação, que posavam de pessoas normais e impassíveis diante dos problemas da vida. Decide, portanto, soltá-los todos.
Ao fim e ao cabo, o alienista percebe que o único a reunir todas as qualidades de uma pessoa normal e bem equilibrada, sem paixões de arroubo, ou seja, um indivíduo completamente normal e, assim, um louco de verdade, era ele próprio. Então, depois de soltar o seu último paciente, o médico se recolhe, sozinho, ao seu hospício.
“Simão Bacamarte achou em si os característicos do perfeito equilíbrio mental e moral; pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as qualidades enfim que podem formar um acabado mentecapto. Duvidou logo, é certo, e chegou mesmo a concluir que era ilusão; mas, sendo homem prudente, resolveu convocar um conselho de amigos, a quem interrogou com franqueza. A opinião foi afirmativa […]. Ato contínuo, recolheu-se à Casa Verde. Em vão a mulher e os amigos lhe disseram que ficasse, que estava perfeitamente são e equilibrado: nem rogos nem sugestões nem lágrimas o detiveram um só instante. — A questão é científica, dizia ele; trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo sou eu. Reúno em mim mesmo a teoria e a prática.”
Ao longo da narrativa, Machado de Assis constrói um inventário de tipos e caracteres humanos, indo do mais comum ao mais grotesco, demonstrando, com uma dose cavalar de ironia, o limite tênue que separa a sanidade da loucura, a mesquinhez da caridade, e ajudando a desnudar risivelmente a ganância do homem, a política, em particular, travestida sempre de interesse pelo bem do povo.
Um inventário estranho, mas em muitos pontos semelhante ao apresentado no conto machadiano é trazido agora em “Figures du Fou: du Moyen-âge aux Romantiques” (figuras da loucura: da Idade Média aos românticos). A exposição, aberta em outubro no Museu do Louvre, em Paris, reúne mais de 300 obras, entre pinturas, gravuras, esculturas, manuscritos iluminados, tapeçarias, objetos preciosos e de uso cotidiano pertencentes a 90 acervos franceses, europeus e americanos.
A ideia que perpassa toda a exposição, segundo a curadoria de Élisabeth Antoine-König e Pierre-Yves Le Pogam, “não é traçar uma história da loucura como doença mental”, mas “questionar a onipresença dos loucos na arte e na cultura ocidental ao final da Idade Média: o que significam esses loucos, que parecem desempenhar um papel-chave na transição para os tempos modernos?”.
O termo “fou” (louco, em francês), lembram os curadores, compreende muitos sentidos: “Simplório, doente, bufão”. Aparentemente, o sentido mais antigo está relacionado à figura do agnóstico ou do “insensato que rejeita Deus”, mas toda sorte de desafortunados, pobres e devassos acabou sendo incorporada a essa categoria, a insensatez.
Segundo Michel Foucault em sua “História da Loucura”, até o período final das Cruzadas, se multiplicou enormemente pela Europa o número de leprosários que, gradualmente, perderam a sua função originária para se tornar abrigos povoados de toda sorte de “incuráveis e loucos”.
Um relatório de 1589 de um magistrado de Stuttgart registrou que “há 50 anos já não há mais leprosos na casa que lhes é destinada”. A lepra foi substituída por doenças venéreas, depois excluídas de seu contexto médico para se isolarem em um “espaço moral de exclusão”. Escreve Foucault: “De fato, a verdadeira herança da lepra não é aí que deve ser buscada, mas sim em um fenômeno bastante complexo, do qual a medicina demorará para se apropriar. Esse fenômeno é a loucura”.
O tom principal da exposição, contudo, é dado pela grande quantidade de obras, nas mais diversas técnicas, que mostram a figura do louco como um comediante ou um bufão, um personagem criado para entreter a corte e o povo, mas também alguém que se desvia ou se perde em desvarios graças a uma paixão de amor.
“Mas isso não é tudo”, lembra Antoine-König no catálogo da mostra. “Seja erótico, trágico, violento, paródico ou escatológico, o louco também usa a sua arte para alertar, zombar, denunciar ou derrubar a ordem estabelecida. O louco rompe com os códigos de propriedade da sociedade ao representar os seus excessos.”
Em tempos de “Coringa“, interpretado magistralmente por Joaquin Phoenix, o público não terá dificuldade de entender obras como “Retrato do Louco Olhando Através de seus Dedos”, de Frans Verbeeck (c. 1550). Trata-se de uma pintura de pequenas dimensões, na qual a figura, vestida com um traje em duas cores e trazendo capuz com orelhas de burro, segura na mão direita seus óculos enquanto tenta cobrir o rosto com a mão esquerda, rindo de si mesmo, já que sua ação é inútil.
O louco travestido de palhaço se repete em muitos exemplos na exposição, inclusive com um traje verdadeiro, exposto em uma vitrine, em suas cores verde e vermelho recortadas sobre a túnica com guizos nas pontas. A mesma figura também aparece em uma peça impressionante, um elmo em aço, com as feições do palhaço usando seus óculos de armação em arco, dentes cerrados e longos chifres de carneiro, comissionado a Konrad Seusenhofer em 1511 e dado por Maximiliano 1º como presente para o rei Henrique 8º.
O louco como figura marginal ganhou as páginas dos manuscritos na segunda metade do século 13 —há alguns exemplos expostos. Isso porque ocupam as laterais (marginália) dessas páginas e se multiplicam como formas estranhas, híbridas e grotescas (André Chastel as classificou e estudou na segunda metade do século 20).
Esses monstrinhos são figuras “originárias do mundo das fábulas, dos provérbios ou do imaginário […] que dançam nas margens laterais ou inferiores e parecem brincar com o espaço da página e do texto, se pendurando em arabescos vegetais ou se aninhando nas letras iniciais. Geralmente cômicas, paródicas, às vezes escatológicas ou eróticas, elas parecem estar ali para divertir o leitor e contrastar com um texto (muito) sério”.
Um dos mais sérios é o salmo “o insensato diz em seu coração: não há Deus”, com a figura do louco nu ou com roupas esfarrapadas, gradualmente substituída pela figura do bufão que veste roupas muito coloridas e cheias de acessórios extravagantes. Nessa chave, se encontram imagens como a história lendária do rei Salomão e seu bobo Marcolf e “tradições particulares, como o chapéu de penas do louco, especialmente usado na Itália”.
Não faz parte da exposição (mas bem poderia) a descrição feita por Jean de Léry de um índio tupinambá com as suas imagens correspondentes, associadas ao exógeno e ao bizarro: “Se quiserdes agora figurar um índio, bastará imaginardes um homem nu, bem conformado e proporcionado de membros, inteiramente depilado, de cabelos tosquiados como já expliquei, com lábios e faces fendidos e enfeitados de ossos e pedras verdes, com orelhas perfuradas e igualmente adornadas, de corpo pintado, coxas e pernas riscadas de preto com o suco de jenipapo, e com colares de fragmentos de conchas pendurados ao pescoço […]. Finalmente sob um novo’aspecto ainda podemos dizer que, deixando-o seminu, calçado e vestido com as nossas frisas de cores, com uma das mangas verdes e outra amarela, apenas lhe falta o cetro de palhaço”.
Também na chave religiosa de interpretação da loucura, se encontra na mostra a famosa pintura de Hieronymus Bosch “A Extração da Pedra da Loucura” (1475-1480), pertencente ao acervo do Museu do Prado, em Madri.
Acreditava-se, então, que a razão da loucura humana seria uma pedra incrustada na cabeça e a sua cura, a sua remoção. Mas o quadro de Bosch é uma sátira a tal tradição, mostrando um falso médico que se apresenta com um funil na cabeça em vez de um barrete (o funil representa a estupidez) extraindo não uma pedra de um homem humilde, mas uma pequena flor (símbolo da inocência ou pureza). De seu cinturão, pende um cântaro vazio (que representa a estultice, esvaziada do verdadeiro conhecimento) e seu alforje está atravessado por um punhal, representando a cupidez por dinheiro. São espectadores da ação um padre segurando um frasco de vinho e uma freira em pose melancólica sustentando um livro fechado sobre a sua cabeça (alegorizando a ignorância).
A legenda no quadro diz: “Mestre, extrai-me a pedra, meu nome é Lubber Das”. Lubber Das é um personagem satírico da literatura holandesa que representa a estupidez. Quem, no entanto, é mais estúpido? O idiota que finge ser algo que de fato não é ou aquele que acredita piamente nele?
Outra pintura de Bosch interpreta a sátira “A Nau dos Insensatos” (1494), de Sebastian Brant. Este autor, é claro, criou uma alegoria baseada no Livro VI da “República” de Platão, ironizando os governos que se fundamentam na hipocrisia e na demagogia, pois aqueles que se arrogam como os mais aptos a se tornar o capitão do navio não sabem verdadeiramente pilotá-lo nem se interessam em saber.
A sátira de Brant inspirou Erasmo de Roterdã a escrever o seu “O Elogio da Loucura” (1511), muito lido na Idade Moderna, que alimentou ainda mais o imaginário dos artistas, em especial, do período renascentista, a começar por Hans Holbein, que produziu inúmeras xilogravuras para a sua primeira edição.
No livro de Erasmo, a própria loucura fala sobre si e sua relação com os homens de todas as ocupações —escritores, gramáticos, os homens da lei, os da ciência e os da arte. É nessa obra em que, pela primeira vez, ocorre a inversão de papéis que aparece no conto de Machado de Assis, pois aqueles que realmente se apresentam como sãos (os que detêm bom senso e razão) são, de fato, mais loucos que aqueles que aparentam ser malucos.
Diz Erasmo, personificando a voz da Loucura: “Todas as coisas são de tal natureza que, quanto mais abundante é a dose de loucura que encerram, tanto maior é o bem que proporcionam aos mortais”.
A loucura por amor, tema muito popular na Idade Média, também está presente na exposição. Figura, por exemplo, em um excepcional aquamanil —recipiente usado para derramar água no ritual de lavagem das mãos— datado do final do século 14 representando Aristóteles e Fílis, que monta sobre ele como se fosse um jumento.
Essa peça, cuja finalidade era divertir os convidados reunidos à mesa em um ambiente doméstico, retrata a lenda popular moralizadora, segundo a qual o filósofo grego e tutor de Alexandre, o Grande, se deixou humilhar pela sedutora Fílis para ensinar uma lição ao jovem rei: o poder das mulheres é maior do que possa sonhar a vã filosofia dos homens. Para a curadoria, “um personagem se interpõe entre o amante e sua dama, o louco, que ridiculariza os valores da corte e destaca o caráter lascivo, até obsceno, do amor humano”.
No final do século 18, com a Revolução Francesa, o confinamento de doentes mentais foi posto sob questionamento moral. “O Manicômio” (c. 1812), de Goya, denuncia uma violência transformada em espetáculo, em oposição ao mito do doutor Philippe Pinel libertando os alienados.
Em 1831, Victor Hugo coloca na figura do Quasímodo, o corcunda de Notre Dame, o epíteto de “papa dos loucos”. Por aqui, a figura do louco disforme será construída em torno do Aleijadinho durante o reinado de Dom Pedro 2º, que amava a obra de Hugo.
A exposição termina com exemplos da arte que estava sendo produzida pouco antes do surgimento da psicanálise freudiana. Por exemplo, a pintura “O Homem Louco de Medo” (c. 1844), de Gustave Courbet, elogiado por Émile Zola como um dos fundadores do naturalismo na arte.
A loucura vai passando, pouco a pouco, do campo da alegoria para o terreno da compreensão científica das pulsões, demências e patologias humanas. Sempre somos, no entanto, falados de alguma forma pela presença daquela dama inteligente, bufona e sarcástica ao extremo, da idade em que alimentou o imaginário humano graças às representações artísticas e literárias feitas dela.
Em tempos atuais, em que os principais influenciadores sociais deixaram infelizmente de ser os artistas, é preciso, contudo, adaptá-la a esses agentes mais novos.
Quando, por exemplo, diz a velha senhora, a Loucura (a partir de Erasmo de Roterdã): “Os cômicos, os músicos, os oradores, os poetas — eis aí, eis os melhores amigos do amor próprio! Quanto mais ignorantes, tanto mais perfeitos se julgam em sua arte, e, assim prevenidos em benefício próprio, aproveitam todas as ocasiões para celebrar os próprios louvores. Mas, não penseis que não encontrem quem os aplauda, pois toda tolice, por mais grosseira que seja, sempre encontra seguidores”.
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