Qual o sentido de escrever se você está morrendo? A pergunta do escritor palestino Atef Abu Saif enunciou o que pairava pelas cabeças em Paraty na noite desta sexta.
Em uma das mesas de tom mais grave da programação, a Flip resolveu aproximar a guerra conflagrada na Faixa de Gaza das enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul —situações muito diferentes, como admitiu desde o começo a mediação da advogada Bianca Tavolari. Por que então montar um debate assim?
“As duas experiências se aproximam pela perda de referências, do plano mais íntimo da casa até o espaço urbano, quando o lugar onde você mora não existe mais e não existirá da mesma forma”, apontou Tavolari. Ela apresentava dois escritores sensíveis que trabalharam nesse contexto de máxima tensão.
O palestino Saif, nascido em um campo de refugiados em Gaza, lançou no Brasil o livro “Quero Estar Acordado Quando Morrer”, narrando os 85 dias que permaneceu na sua região natal após os ataques do Hamas em 7 de outubro de 2023 e os bombardeios de Israel, que deixaram dezenas de milhares de palestinos mortos e agora se estendem ao Líbano.
Julia Dantas, nascida em Porto Alegre e autora do recente “A Mulher de Dois Esqueletos”, organizou o blog “Diário da Enchente”, com testemunhos de dezenas de gaúchos sobre a maior tragédia climática no Sul, em maio. “Os diários se impõem em momentos de urgência porque não há o tempo da literatura, de escrever e elaborar, as coisas precisavam ser ditas naquele instante”, afirmou.
“Não tenho grandes talentos para lidar com enchentes, mas todos estávamos muito mobilizados. As pessoas que tinham barcos fizeram resgate e transporte de alimentos, e a escrita era o meu barco possível.”
Saif afirmou que nunca quis escrever diários. “Mas o que um escritor faz é escrever. Depois de uma semana de ver tudo sumir, ser destruído, eu senti que realmente podia morrer até o fim do dia. E pensei, caso eu morra, quero que pessoas saibam o que aconteceu comigo.”
Isso fez com que outras pessoas o abordassem para contar as histórias delas também, cimentando a impressão de que a escrita é fundamental para se sentir vivo, para não ser esquecido.
“42 mil palestinos foram mortos, mas eu não sou 42 mil. Sou uma pessoa, e cada pessoa tem centenas de sonhos. Eu não queria ser um número.”
Saif hoje mora na Europa e, quando perguntam a ele como é a vida em Gaza, responde que é como viver no noticiário. “Como uma prisão. Cerca de 85% das pessoas que moram em Gaza nunca saíram de lá. E agora estão demolindo essa prisão com os prisioneiros junto.”
A mesa da Flip foi tomada por depoimentos mais íntimos que geopolíticos —se é que dá para fazer essa distinção—, mas ao final deu uma guinada diante das perguntas da plateia.
Dantas afirmou que a reeleição do atual prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo —que segundo ela se encaminha para acontecer depois de 49,7% dos votos válidos no candidato do MDB no primeiro turno— faz parte do mesmo terreno do inacreditável da experiência das enchentes.
“Mas houve mais abstenções do que votos nele, o que soa como um desânimo geral, uma descrença em um projeto para o futuro.”
Saif argumentou que Israel é um país criado por uma resolução da ONU e, mesmo assim, não cumpre nenhuma resolução da ONU —o que revela uma faceta desalentadora da comunidade internacional.
“Os direitos humanos existem para poucos, não para todo mundo”, disse ele. “Mas temos que acreditar em um mundo em que a injustiça não exista mais. Talvez eu não esteja vivo para ver, mas vai acontecer.”
Antes, o mesmo palco reuniu o piauiense Odorico Leal, que estreou nos contos com a incensada coletânea “Nostalgias Canibais”, e a pernambucana Micheliny Verunschk, veterana que venceu o Jabuti com o romance “O Som do Rugido da Onça”, para um debate sobre a capacidade da literatura de organizar ou ressignificar a realidade.
Mais que uma conversa, a mesa mediada por Rita Palmeira foi uma oportunidade para dois autores que dialogam com a ideia de antropofagia apresentarem seus livros e temas ao público.
“Tenho visto muitos escritores falando como literatura tem se deparado com uma realidade contraditória, tão paródica que fica difícil manejar literariamente”, disse Leal, emendando num comentário sobre as candidaturas derrotadas de Pablo Marçal e Tabata Amaral em São Paulo.
“Acabamos de sair de uma eleição em que um candidato menciona o suicídio do pai de outra candidata. Só falar disso num debate político é quase inapreensível. E ao mesmo tempo tem, na Paulista, evangélicos chorando porque esse candidato não foi ao segundo turno. Não consigo imaginar contradição maior.”
“E a literatura tem que trabalhar com o verossímil, as pessoas buscam ali consonâncias que apontem para alguma coisa inteligível”, apontou, arrematando com um comentário espirituoso —só acha a literatura a melhor forma de lidar com isso porque seu trabalho é ser escritor.
Verunschk disse que ver pessoas ostentarem a defesa da tríade “família, tradição e propriedade” faz pensar “que tempo é esse e em que mundo eu estou?”
“O real está cada vez mais movediço, craquelado, e você como artista tem que reorganizar sua mirada para poder responder a essas questões. Não sei se a literatura tem todos os elementos para responder, mas pode fabular em cima disso e criar novos problemas. E isso é bom.”
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