Francisco Bosco
[RESUMO] Série da Apple TV+ dirigida por Alfonso Cuarón e protagonizada por Cate Blanchett sacrifica a complexidade do enredo em nome de uma moral política maniqueísta, sustenta o autor, inscrevendo-se em um conjunto de representações culturais recentes que confundem a crítica a traços opressores da masculinidade tradicional com a asfixia de meninos e homens jovens por meio do sentimento de culpa e da falta de perspectivas.
Em janeiro de 2018, as mulheres que fundaram a organização Time’s Up foram entrevistadas por Oprah Winfrey. A certa altura, Oprah mostra um tuíte de Dylan Farrow, filha adotiva de Woody Allen, que acusava o pai de a ter molestado sexualmente quando criança. Farrow demandava que o movimento “mudasse as coisas inequivocamente”. Oprah pergunta: “O que vocês diriam para ela?”. Natalie Portman declara: “Acredito em Dylan”.
Oprah cumpre o dever jornalístico e observa que Allen sofrera duas investigações, ao fim das quais nenhuma acusação contra ele prosperara. Mas acrescenta: “Entretanto, as questões mais amplas permanecem”. A atriz America Ferrera comenta: “Acho que uma grande parte disso é sobre mudar não apenas as regras escritas, mas também as não escritas”.
Essas formulações são um dos principais marcos da ruptura epistêmica instaurada pelo movimento MeToo e suas derivações. A primeira formulação vai contra o princípio segundo o qual a busca pela verdade deve recorrer aos procedimentos consagrados, seja pela filosofia, pela ciência, pelo direito ou pelo jornalismo: investigação, apuração, levantamento de evidências, competição entre argumentos etc.
Woody Allen foi investigado, submetido aos procedimentos epistêmicos consagrados e inocentado. Desde então, nenhum fato novo que pudesse conduzir a uma reavaliação do processo surgiu, mas a própria justiça procedimental estava sendo revogada. Doravante, o epistêmico seria subordinado ao político.
Não importava, portanto, que a submissão ao político, ignorando toda a dimensão procedimental que teoricamente visa a minimizar o risco de se cometerem injustiças, pudesse eventualmente sacrificar a verdade. A verdade tornava-se ela mesma política.
A segunda formulação, de America Ferrera, consagrava o movimento social como um poder autorizado a se sobrepor e até a ignorar o poder da justiça institucional. Se as investigações contra Allen —as “regras escritas”— não puderam culpá-lo e puni-lo, que a disputa narrativa social o fizesse.
Pronto, estava moralmente autorizada a era dos cancelamentos e julgamentos sumários, que vigorou por toda a última década, desde o final do ano de 2013 (o desastrado e desastroso tuíte de Justine Sacco, em dezembro daquele ano, me parece ser o marco inicial).
Por mais que a serviço de uma verdade histórica ampla e irrefutável —as violências sofridas pelas mulheres—, essa coalescência entre episteme e política é de difícil digestão para estômagos kantianos, rawlsianos ou democratas liberais avessos à justiça utilitária. Eu mesmo, à época, embora reconhecendo as razões justíssimas do pleito, critiquei a gambiarra, então consagrada, no Brasil, pela máxima “a vítima tem sempre razão”.
Alguns anos depois, a criminologista Maria Lucia Karam revisitava seu conhecido “A Esquerda Punitiva”, abordando agora a “esquerda social”, que passara a “dar valor praticamente inquestionável à palavra da alegada vítima em hipóteses de crimes sexuais, como o estupro, negando qualquer valor à palavra do réu”. Em tal posicionamento, prossegue Karam, “a presunção de inocência é convenientemente esquecida”. Esquece-se até mesmo “da antiga lição do direito romano: ‘testis unus, testis nullus’ [testemunha única, testemunha nula]”.
Essa virada epistêmica era, claro, sintoma de uma crise, de uma justa revolta contra as distorções ou mesmo falsificações vigentes tanto nas instituições quanto no debate social sobre os casos de assédio moral e sexual contra mulheres. Como observam Waldomiro Silva, Maria Virginia Machado e Giuseppina Marsico: “Numa democracia, a confiança epistêmica nas instituições e em outras pessoas é absolutamente essencial”.
A palavra das mulheres, que não tinha qualquer valor de verdade, agora passava a ter valor incondicionado de verdade. Isso, por óbvio, no interior do campo progressista, pois rapidamente —e por diversos outros fatores— o chão social foi ruindo e um fosso dividiu o Brasil e o mundo em dois.
Na última década, o tema foi elaborado pela cultura. A série “Disclaimer” (Apple TV+), dirigida por Alfonso Cuarón, propõe a reintrodução dos elementos da dúvida, da desconfiança e do estado de atenção diante das narrativas. “Atenção para a narrativa e a forma.” “Elas podem nos aproximar da verdade, mas também podem ser uma arma com grande poder de manipulação.” São frases iniciais da obra.
Pois bem, serão dois os meus pontos principais. Tentarei demonstrar que a série falha em sua intenção manifesta e acaba por traí-la, pois sacrifica a complexidade e as ambiguidades em nome de uma moral política maniqueísta, e que há um problema no modo como os homens da obra são retratados.
Esse modo se inscreve em um conjunto de representações da masculinidade que configuram, no limite, uma questão política, à medida que estão contribuindo para o agravamento de problemas psicossociais de meninos e adolescentes e encaminhando muitos homens, principalmente os jovens, ao ideário da extrema direita.
Portanto, está dado o “disclaimer”: diante de uma obra que trata dos direitos epistêmicos das mulheres e os afirma, este texto, sem deixar de reconhecer a justiça moral dessa perspectiva, vai pensar outros lados da questão.
Vou tentar resumir a trama da série ao mínimo, já sob a minha perspectiva, claro, e de meus fins argumentativos. Catherine Ravenscroft, interpretada por Cate Blanchett, é uma documentarista bem-sucedida, casada com Robert, diretor de uma ONG. Ambos têm um filho, Nicholas, de 25 anos, um jovem existencialmente anêmico, sem horizonte profissional, que tem uma relação fria, quase hostil com a mãe, e algum vínculo afetivo com o pai.
Vinte anos antes, numa viagem à Itália, Robert tem que se ausentar por alguns dias. Catherine então conhece um jovem, Jonathan, com quem tem uma tórrida noite de sexo enquanto o filho dorme. O banquete envolve uma sessão de fotos.
No dia seguinte, exaurida pela orgia, Catherine cochila na praia ao lado do filho. Ela acorda sobressaltada; o filho rumou mar adentro e está à deriva em seu botezinho inflável. Catherine corre para o mar, mas paralisa de medo. Jonathan se atira ao mar, salva o menino, mas acaba morrendo afogado, sem que ela tenha se esforçado para chamar os salva-vidas.
Os pais de Jonathan são Nancy e Stephen Brigstocke. Nancy, desesperada pela morte do filho, cede à melancolia e definha, até morrer de câncer. Stephen se torna um idoso apático e desesperançado.
Quando decide doar os objetos da esposa, encontra fotos antigas e descobre as imagens de Catherine nua. Encontra também um manuscrito, “The Perfect Stranger”, dedicado “a meu filho, Jonathan”. O manuscrito tem um “disclaimer”: “Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas não é uma coincidência”. O livro de Nancy conta a história do encontro entre Catherine e Jonathan, tal como o vimos nas imagens do passado.
Stephen toma para si o propósito de destruir a vida de Catherine, Robert e Nicholas, fazendo com que leiam o livro e anexando as fotos pornográficas. Com efeito, Robert a expulsa de casa, e Nicholas tem uma overdose de heroína. Essa é a narrativa que nos é apresentada.
Contudo, depois de ter seu casamento varrido por um tufão e estar com o filho entre a vida e a morte, Catherine decide contar a verdade. Ela fora estuprada por Jonathan e, por isso, no fatídico evento do mar, realmente desejou que ele morresse, embora nada tenha feito nesse sentido. Descobrimos ainda que Nicholas viu a mãe ser violentada, embora ela nunca tenha ficado sabendo disso. A emergência da palavra verdadeira joga luz sobre os sentidos das ações dos demais personagens envolvidos.
Nick provavelmente teve tanto uma amnésia dissociativa quanto uma dissociação traumática afetiva. Isso explica ele não se lembrar, nem do trauma nem de seu entorno, da viagem para a Itália. Explica também sua total desconexão afetiva com a mãe: “Para pessoas em estado de dissociação, pode ser mais fácil encarar um esporte radical de alto risco do que situações de intimidade como o aniversário do próprio filho ou o carinho de alguém que ama”, observa a psicóloga Ediane Ribeiro.
Robert não teve acesso à informação que poderia explicar o comportamento de seu filho e o de sua mulher, o que o conduziu a tomar decisões erradas, pois baseadas em premissas erradas. Homens têm maior dificuldade de lidar com a autonomia do desejo da mulher, sem dúvidas, e muitas vezes reagem agressivamente a essa “revelação”.
Mas, no caso de Robert, a trama constrói as condições —a relação fria entre mãe e filho, a reação de Catherine ao receber o livro, a evidência das fotos dentro desse contexto— para que ele aceite de cara a versão de uma Catherine egoísta e cruel.
Stephen, por sua vez, não é o homem que tomou para si a reparação pelo definhamento de sua amada esposa, mas um velho amargo que adentrou uma dinâmica de autoengano assassino. Pois Nancy tinha escrito um livro em segredo, para tentar elaborar seu luto, sem indicação de que era seu desejo torná-lo público. Essa iniciativa é de Stephen, que imputa fantasiosamente a ela, como uma forma de justificar para si mesmo o que na verdade era um projeto narcísico de vingança.
Por fim, Jonathan nunca foi um jovem inocente que se expôs ao risco de morte para salvar uma criança. Era um estuprador que já tinha dado sinais de agressividade, ignorados pelos pais. Nancy, no fim das contas, é retratada como uma mãe que não suportou lidar com a verdade de que seu filho era violento e, até o fim, cedeu ao autoengano de imaginá-lo vítima. Mas Nancy teve a dignidade de não permitir que esse autoengano agredisse outras pessoas.
Sobre o silêncio de Catherine: um trauma, por definição, é uma ferida aberta, de que costumamos nos aproximar apenas pelos mecanismos do inconsciente. É aceitável, para a psicanálise e para a vida, que Catherine tenha procurado se afastar de seu trauma.
Mas o ponto é: podem-se evocar justificativas legítimas para Catherine ter mantido o silêncio por 20 anos (embora seja pouco verossímil ela manter o silêncio diante da desestruturação total de sua vida). Entretanto, é dificilmente justificável condenar Robert por ter agido como agiu diante do que (não) sabia, mas é isso o que a série faz.
Esquematicamente, entre os personagens principais temos quatro homens —um estuprador, um perverso, um bobalhão machista e um jovem zumbi— e duas mulheres, uma mãe trágica e digna, e a heroína, “farol da verdade”. A ambiciosa assistente de Catherine é talvez a única personagem feminina traçada com um sinal negativo, numa espécie de “tokenização” às avessas. Trata-se, ainda assim, de um sinal ambíguo, pois a ambição não deixa de ser uma forma de empoderamento.
Catherine, no fim das contas, é poupada de críticas, exceto algumas que vêm de sua própria consciência. A moral final da série é que ela é, sobretudo, senão apenas, a vítima de uma violência real e uma narrativa produzidas por muitos agentes, quase todos homens. Certamente é.
Mas Catherine se torna, assim, o pétreo ponto de apoio moral e epistêmico com que devemos nos identificar —um encaminhamento decepcionante para uma série cuja premissa também pode ser descrita como o lembrete de que a adesão a um único ponto de vista trai a complexidade das perspectivas que compõem uma mesma história.
Defender a complexidade não significa incorrer num relativismo que sacrificaria os fatos —no caso, o fato central e não relativizável da violência sexual—, mas afirmar uma leitura mais complexa dos atos dos personagens e de suas consequências.
Na moral da história, Robert, o marido que, apesar de exercer amorosamente o papel de coadjuvante (uma das dificuldades notórias dos homens), é percebido como um egoísta cruel que se sente melhor sabendo que a esposa foi estuprada do que sabendo que ela teve prazer sexual com outro homem. Não basta ser coadjuvante; é preciso ser bobalhão e, sob essa superfície já rebaixada, egoísta e cruel. Não há muita saída.
Digo, há. O único personagem masculino filmado com empatia em “Disclaimer” é Nicholas. O jovem de 25 anos cuja vida foi sequelada pelo trauma que ele nunca teve a chance de elaborar. Nicholas vaga pela série como um fantasma, arrastando suas correntes entre um quarto precário, um subemprego e um ponto de consumo de heroína. É esse homem, traumatizado, subjetivamente desvirilizado, quase um fiapo de vida, que é oferecido como ponto de empatia.
Pois há redenção: basta reconectar-se com a mãe perdida, “tornar-se um homem por meio da mulher”. Essa dialética —as novas masculinidades sendo forjadas na crítica do feminismo— é aceitável, desejável, necessária, mas me parece que precisa ser feita de outra forma. Talvez seja pedir demais a muitos homens que aceitem se identificar com os papeis de idiota, egoísta cruel, perverso, estuprador ou zumbi que deve morrer para renascer do ventre político feminista. Ao que tudo indica, não está funcionando.
Há uma crise da masculinidade, por óbvio. Mas é um erro perigoso encarar isso apenas com olhos de reparação, sem enxergar o quanto meninos e jovens homens que não têm culpa pela história do patriarcado estão sendo submetidos a um feixe de representações e interações que os faz se sentirem culpados, deslocados, sem perspectivas.
O cientista social Richard Reeves observa que meninos e homens estão ficando para trás em todo o processo educacional na maioria das grandes economias mundiais. Essa lacuna de gênero, nos EUA (onde as mulheres são cerca de 60% dos estudantes universitários), ocorre especialmente entre famílias pobres e não só entre pessoas brancas, mas negras também.
Warren Farrell, coautor de “The Boy Crisis“, relata: “Ouço mais meninos hoje dizendo alguma versão de ‘Gostaria de não ter nascido’. E dizendo isso porque ouvem na escola que, se você nasceu homem, você é parte do patriarcado, o que significa que você faz parte de um sistema feito de regras que beneficiam os homens, que os homens são os opressores e as mulheres são as oprimidas”. Os meninos, prossegue Farrell, “estão escutando que ‘o futuro é feminino’ e a masculinidade sendo descrita como tóxica”.
Na mesma linha, Scott Galloway relata: “Recebo muitos emails de pais preocupados, principalmente de mães, como este: ‘Tenho uma filha que mora em Chicago e trabalha com relações públicas e outra filha que está na Penn. Meu filho mora em nosso porão, fuma e joga videogame'”. O autor prossegue: “Muitos estão presos: isolados, desesperados e improdutivos, propensos à obesidade, ao vício em drogas e ao suicídio, suscetíveis à misoginia, às teorias da conspiração e à radicalização”.
Essa situação é, ao que tudo indica, um dos fatores principais que têm levado a uma separação cada vez maior entre os votos de homens e mulheres. A meu ver, nos EUA isso é mais claro, porque o Partido Democrata, mesmo sob Joe Biden ou durante a cuidadosa campanha de Kamala Harris, está associado à agenda progressista em sua forma contemporânea.
No Brasil, a extrema direita bolsonarista é em quase tudo análoga ao trumpismo, mas a simetria patina do outro lado: Lula é um social-democrata “old school”, com traços de conservadorismo no campo dos gêneros, em que pese a inflexão intensa de seu comportamento a partir da influência de Janja. Não temos espaço para avançar nessas distinções; fiquemos com a realidade dos EUA, bastante semelhante à nossa, e geralmente indicativa de nosso futuro.
Como muitos cientistas políticos observaram, a campanha de Harris evitou tratar de problemas de gênero. Mas Galloway lembra que o site do Partido Democrata tem uma página intitulada “A quem servimos”. “Estão listados 16 grupos, incluindo afro-americanos, a comunidade LGBTQ, mulheres, veteranos e 12 outros grupos demográficos que compreendem aproximadamente 76% da população.” Mas não há qualquer referência a homens jovens. “Quando você defende explicitamente 76% da população, não está defendendo 76%, mas discriminando 24%”, conclui.
Tudo isso são dados ou interpretações baseadas em evidências. Mas, diante dessa conversa, a reação da maioria das mulheres costuma ser de repúdio. À evocação dos problemas subjetivos e sociais dos homens, elas reagem como se isso fosse um mimimi sem senso de proporções e/ou estivesse se opondo à agenda feminista. É uma reação razoável, claro. Para cada dado sobre a “boy crisis”, podemos evocar dados, mais antigos e mais graves, sobre violência contra mulher, baixa representatividade institucional, diferença salarial etc.
Enquanto escrevo esse texto, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou uma proposta que proíbe o aborto legal em quaisquer circunstâncias, na prática determinando a maternidade compulsória e traumática e expondo ao risco de morte meninas e adolescentes estupradas. Essa lei deixaria o Brasil na triste companhia de apenas 16 países, entre os quais Iraque, Filipinas, Nicarágua, El Salvador e Honduras. É uma lei mais regressiva que a do Irã, do Afeganistão e de Mianmar.
Não se trata, entretanto, de uma antinomia. É possível defender um ajuste na forma como as masculinidades são representadas hoje sem que isso implique qualquer freio ao avanço da agenda das mulheres.
Do mesmo modo, a resposta progressista ao padrão de votos de homens e mulheres costuma enxergar nisso apenas uma manifestação masculina de ressentimento, de perda de privilégios, logo uma ação política reacionária. Essa perspectiva é verdadeira, mas ela não torna falsa a perspectiva segundo a qual os homens, sobretudo jovens, estão se sentindo asfixiados pelas representações culturais que não cessam de confundir a crítica a traços opressores da masculinidade tradicional com uma crítica totalizante, ontológica mesmo, aos homens.
A série dirigida por Alfonso Cuarón é um sintoma desse feixe discursivo, e a ele se soma, aprofundando o problema. Como escreveu Phillip Maciak, crítico da New Republic: “Disclaimer é a história de uma mulher que nunca é ouvida pelos homens de sua vida. E parece, por vezes, que Cuarón prefere contar uma história polêmica sobre a injustiça dessa desatenção, acusar as fileiras de homens que a ignoram e mostrar ao público a sua própria cumplicidade em vez de apenas deixá-la falar”.