Enquanto o país contava os dias para uma eleição amargamente polarizada neste outono, o conselho editorial do Los Angeles Times elaborou um esboço detalhado para um apoio que parecia óbvio a uma instituição que se inclinou à esquerda por gerações: a vice-presidente Kamala Harris deveria ser a próxima presidente dos Estados Unidos.
Nativa da Califórnia e residente de Los Angeles, Kamala não era só uma figura geracional unificadora e inspiradora, na visão dos membros do conselho, mas também um importante baluarte entre Donald Trump e as instituições democráticas. Eles não sabiam, no entanto, que um grupo diferente e mais poderoso havia se reunido —a família de Patrick Soon-Shiong, o proprietário do jornal— com planos bem diferentes para a voz da publicação.
Nesta semana, o bilionário da biotecnologia que comprou o jornal em 2018 por US$ 500 milhões (cerca de R$ 2,8 bilhões) seguiu esses planos com pouca explicação interna ou pública, vetando abruptamente o apoio planejado e informando ao conselho por meio de um intermediário que o Los Angeles Times não faria nenhuma recomendação na corrida presidencial.
Por dias, leitores de um sul da Califórnia amplamente liberal especularam com raiva sobre a decisão, que foi vista como um favor a Trump e um voto de desconfiança em Kamala.
Milhares de leitores cancelaram assinaturas. Três membros do conselho editorial renunciaram. Quase 200 funcionários assinaram uma carta aberta à direção exigindo uma explicação, reclamando que a decisão tão próxima da eleição minou a confiança da organização de notícias com os leitores. O The Time’s News Guild, sindicato da Redação, protestou. Em postagens nas redes sociais e entrevistas subsequentes com sua própria organização de notícias, Soon-Shiong definiu a escolha como uma tentativa de neutralidade.
Mas em uma declaração surpreendente no sábado, sua filha, Nika Soon-Shiong, 31, uma ativista política progressista que frequentemente foi acusada de tentar interferir na cobertura do jornal, disse que a decisão foi motivada pelo apoio contínuo de Kamala Harris a Israel na guerra em Gaza.
“Nossa família tomou a decisão conjunta de não apoiar um candidato à Presidência. Esta foi a primeira e única vez que estive envolvida no processo”, disse Nika, que não tem papel formal no jornal, em uma declaração ao The New York Times. “Como cidadã de um país que financia abertamente um genocídio, e como uma família que experimentou o apartheid sul-africano, o apoio seria uma oportunidade de repudiar justificativas para a ampla perseguição de jornalistas e a guerra contínua contra crianças.”
Nos últimos seis anos, escritores e editores têm se irritado cada vez mais com a interferência de Patrick Soon-Shiong, 72, e sua família na Redação, onde os proprietários são geralmente vistos menos como proprietários com o direito de impor suas visões pessoais e mais como guardiões de um bem público.
Em janeiro, Kevin Merida renunciou ao cargo de editor-executivo após entrar em conflito com Soon-Shiong devido a um artigo não publicado sobre um conhecido do proprietário do jornal, além de outros conflitos na Redação. Apenas algumas semanas depois, a publicação realizou suas demissões mais abrangentes em mais de uma década, cortando 115 jornalistas em um movimento que reduziu a Redação em mais de 20%.
Mas a disputa sobre o apoio —ecoada dois dias após o The Washington Post anunciar que também não faria endosso de nenhum candidato— levantou novas questões urgentes sobre o que motivou a decisão.
Falando esta semana no canal de notícias a cabo Spectrum, que regularmente veicula conteúdo do Los Angeles Times, Soon-Shiong foi questionado sobre uma possível motivação política. “Eu quero desesperadamente que todas as vozes sejam ouvidas no lado da opinião”, disse ele. Ele disse que não sabia se os leitores o viam ou à sua família como ultraprogressistas ou não. “Mas eu sou independente.”
Em entrevista dada a um de seus próprios repórteres na sexta-feira (25), Soon-Shiong disse que sua posição não se baseava em nenhuma questão única, nem que pretendia, ao não apoiar, favorecer Kamala ou Trump. “Devemos ser uma organização que se levanta e diz os fatos”, apresentando visões de todo o espectro político, disse ele. “Acho que o país precisa disso desesperadamente.”
Vários editores seniores do Times disseram que não foram informados sobre as razões para a decisão de Soon-Shiong, mas observaram que ele frequentemente criticava o governo Biden, se gabava de ter jantado com Trump após a vitória de 2016 e frequentemente tem aprovações pendentes na FDA (agência americana que regula alimentos e medicamentos).
Uma pessoa com potencial conhecimento da situação é a atual editora-executiva da publicação, Terry Tang, que substituiu Merida. Em uma ruptura com a prática na maioria das grandes organizações de notícias, que têm uma separação clara entre notícias e opinião, Tang, que havia sido editora da página de editoriais, assumiu a supervisão de ambos os departamentos quando se tornou editora-executiva. Antes, trabalhou como editora no The New York Times por 20 anos.
Tang não respondeu a pedidos de comentário e não parece ter se dirigido à equipe sobre o assunto.
Mariel Garza, que era editora de opinião do jornal e renunciou em protesto na terça-feira, disse que foi pega completamente de surpresa. Soon-Shiong, disse ela, foi informado no final de setembro que o conselho planejava apoiar Kamala, uma escolha que não surpreendia, dado o histórico de críticas do Times a Trump e suas posições editoriais geralmente liberais. Kamala é casada há mais de uma década com um advogado de entretenimento de Los Angeles, Doug Emhoff, e mantém uma casa no sofisticado bairro de Brentwood, em West Los Angeles.
Garza disse que ficou cada vez mais preocupada à medida que as semanas passavam sem a aprovação do apoio pelo proprietário. Duas semanas atrás, disse ela, soube de Tang que Soon-Shiong havia decidido não emitir um apoio. Ela disse que Tang lhe contou que ele não havia dado uma justificativa clara.
Garza, que foi a primeira a renunciar no conselho editorial, disse que não teve escolha. “Este é o nosso dever”, disse ela em uma entrevista na sexta-feira. “Este é um momento assustador, e todos precisamos ser corajosos, e não nos acovardar.”
No final da semana, mais dois membros do conselho editorial, Karin Klein e Robert Greene, vencedor do Prêmio Pulitzer de 2021, também anunciaram sua saída. Todos contestaram vigorosamente a afirmação de Soon-Shiong de que eles haviam escolhido permanecer em silêncio.
“Não se trata de discordar do proprietário”, disse Klein, autora e especialista em educação que está no Times há 35 anos, 22 deles como editorialista. “Fazer isso algumas semanas antes da eleição é realmente fazer um editorial —um editorial fictício e invisível que envia uma mensagem de que temos dúvidas sobre Kamala.”
Repórteres e editores têm se irritado com telefonemas, e-mails e postagens nas redes sociais oferecendo perguntas e sugestões sobre a cobertura de notícias tanto de Soon-Shiong quanto de sua filha. No passado, ela criticou a cobertura da publicação sobre crime, policiamento e a guerra de Israel em Gaza, entre outras questões.
Nika Soon-Shiong havia sinalizado as preocupações sobre a política de Israel de Kamala em uma postagem nas redes sociais no início desta semana, em referência à decisão do LA Times. “Isso não é um voto para Donald Trump. Isso é uma recusa em APOIAR um candidato que está supervisionando uma guerra contra crianças”, ela postou no X.
Mas até sua declaração ao The New York Times no sábado, ela havia permanecido em silêncio sobre como interpretar a publicação. “Pelo bem dos vivos e em nome dos mortos, pelo bem da nossa humanidade coletiva —precisamos elevar o padrão moral”, disse ela.
Em sua própria postagem nas redes sociais esta semana, Soon-Shiong rebateu a versão dos eventos de Garza em torno da decisão de apoio. Ele escreveu no X que havia orientado o conselho editorial a comparar as políticas de cada candidato e deixar que os leitores decidissem quem escolher. “Em vez de adotar esse caminho como sugerido, o Conselho Editorial optou por permanecer em silêncio, e eu aceitei a decisão deles”, declarou.
No sul da Califórnia, líderes cívicos expressaram indignação com o que muitos consideraram uma abdicação de responsabilidade por parte de um importante veículo de notícias no estado mais populoso do país.
“Os jornais servem como a consciência cívica para comunidades em todo o país. Nesse papel, eles têm a capacidade de falar a verdade ao poder”, disse Austin Beutner, um financista local que ocupou várias posições de liderança de destaque em Los Angeles, incluindo um breve período há uma década como editor e diretor executivo do Los Angeles Times. “É uma perda terrível para a sociedade quando eles abdicam dessa responsabilidade.”
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