[RESUMO] Em seu terceiro filme, o cineasta Brady Corbet retoma e aprofunda a grande questão que norteia sua obra: como se manter minimamente íntegro em um mundo implacável? Épico que subverte o gênero, “O Brutalista”, história de um arquiteto sobrevivente do Holocausto que emigra para os EUA, testemunha a tragédia dos deslocados quando já não se pode mais encontrar um lar, restando apenas a esperança de glória na arte.
A chave para entender este filme enigmático chamado “O Brutalista”, dirigido por Brady Corbet, está na dedicatória que aparece logo no início dos créditos finais: “Em memória de Scott Walker”.
Para quem não sabe, Scott Walker foi um cantor e compositor americano, nascido em 1943. Dono de uma voz fascinante, que influenciou de David Bowie a Beck, passando por cantoras como a recém-falecida Marianne Faithfull e a alemã Ute Lemper, ele começou a carreira como um discípulo fiel de Jacques Brel. Junto com a banda The Walker Brothers (em parceria com Gary e John Walker, um parentesco fabricado pela gravadora), entrou na parada de sucessos com uma série de hits românticos.
Nos anos seguintes, contudo, Scott Walker mudou de ideia sobre o rumo da sua arte. Queria deixar de lado as melodias doces e suaves e se aproximou lentamente de uma realidade mais cruel e áspera.
Em seus quatro primeiros álbuns solos (todos batizados apenas com seu nome), ele ousou com orquestrações inusitadas e complexas, temáticas tabus para qualquer época (homossexualismo, prostituição e a defesa do stalinismo) e aproximações metafísicas, ao lidar com a morte e o sofrimento como assuntos essenciais da sua música.
Esses discos foram sucessos de crítica, mas fracassos de vendas. Assim, para pagar as contas, ele voltou com o The Walker Brothers. Um dos hits dessa época, “Nite Flights”, depois ganharia uma versão memorável por David Bowie nos anos 1990. Por coincidência, foi também quando Scott Walker decidiu que iria dobrar a aposta, ao esquecer qualquer tipo de melodia e abraçar para sempre o ruído.
Daí surgem álbuns memoráveis e extremamente experimentais, como “Climate of Hunter” (1984), “Tilt” (1995), “The Drift” (2006) e “Bish Bosch” (2012), em que o cantor abandona a persona Jacques Brel e passa a ser completamente possuído pelo espírito de um Bernard Herrmann da vanguarda, subvertendo tudo o que pensávamos ser música contemporânea, ao traduzir nossos piores pesadelos em acordes opressivos e com temas ainda mais inusitados (entre eles, o paralelo bizarro entre o nascimento de Elvis Presley e o ataque contra as Torres Gêmeas).
Nessa fase Scott Walker se tornou um recluso, um deslocado no próprio meio musical. Não dava entrevista a ninguém. Impedia a divulgação de fotos. A mídia mal sabia quem era ele de fato. Poucos o conheciam pessoalmente. Antes de morrer, em 2019, Walker terminou sua discografia impecável com as trilhas sonoras dos dois primeiros filmes de um raro amigo que então o acompanhava: o ator, agora cineasta, Brady Corbet.
Corbet fez fama no cinema independente, ao ser um dos protagonistas em longas de Michael Haneke (a refilmagem americana de “Violência Gratuita”, em 2007) e Gregg Araki (“Mistérios da Carne”, em 2004).
Todavia, seu modelo de vida sempre foi Scott Walker. Quando terminou seu primeiro longa-metragem como diretor, “A Infância De Um Líder” (2015), queria que ele compusesse a música para a obra. Por incrível que pareça, Walker aceitou o convite —e criou uma pequena joia da melodia dissonante.
Faria o mesmo para o segundo longa de Corbet, o inescrutável “Vox Lux” (2019), em que Natalie Portman interpreta uma superstar da música pop com uma trajetória semelhante à do cantor americano.
O filme de estreia foi um sucesso de crítica, colocando o jovem diretor como uma promessa a ser conferida, mas o seu sucessor foi um fiasco. Quem o viu achou pretensioso demais. E, assim, a trajetória de Brady Corbet estava por um fio.
Neste meio tempo, com a morte de Scott Walker, Corbet (e sua esposa, Mona Fastvold) decidiu fazer a mesma coisa que o mestre: dobrou a aposta. Na verdade, triplicou.
Criou o roteiro de uma biografia ficcional, a ser filmada de maneira épica (por meio do VistaVision, um formato que fez a alegria de John Ford e Alfred Hitchcock nos anos 1950), a respeito de um arquiteto húngaro, sobrevivente do Holocausto, chamado László Tóth (Adrien Brody), que imigra para os EUA e lá conhece um milionário, Harrison Lee Van Buren (Guy Pearce), que o contratará para criar enfim o monumento que marcará a vida de ambos.
Eis a trama de “O Brutalista”, em cartaz no Brasil, indicado a 10 Oscars, incluindo melhor filme, diretor e ator (Brody). Ao que parece, desta vez Corbet saiu da armadilha que tinha entrado com “Vox Lux”. A crítica amou seu terceiro longa; o público o respeitou de forma solene, suportando com estoicismo suas três horas e meia de duração (com direito a 15 minutos de intervalo).
Ainda assim, o espectro de Scott Walker assombra cada fotograma do épico —que, na verdade, conforme o espectador percebe no transcorrer da projeção, se transforma em um “antiépico”.
Se em “A Infância de um Líder” (parábola sobre como surge o fascismo nos nossos tempos) e em “Vox Lux” (outra parábola, agora a respeito de como o artista é alguém acossado por pactos fáusticos) Corbet tenta explicar para si mesmo (e para o público) que o mundo é um lugar implacável para quem tenta se manter minimamente íntegro, em “O Brutalista” ele finalmente chega à solução deste dilema.
Contudo, assim como ocorreu com Scott Walker no passado, ele foi obrigado a encontrar uma forma artística idiossincrática para subverter as expectativas do espectador. O primeiro indício está no título.
Aparentemente, refere-se à escola de arquitetura que fez fama nas décadas de 1940 e 1950, com edifícios gigantescos e impessoais. Mas também pode estar ligado ao tipo de relações humanas que conectam Laszlo e Van Buren (além de outros personagens do filme).
A arquitetura, aqui, é só um pretexto para Corbet desmontar o gênero cinematográfico do épico (daí o seu caráter “anti”) e chegar à essência de qualquer obra de arte memorável: a de ser um testemunho a favor dos deslocados do nosso tempo.
Portanto, “O Brutalista” não é sobre arquitetura, muito menos sobre imigração, como informaram por aí. Seu tema principal é o exílio, seja exterior (por causa das circunstâncias históricas), seja interior (devido às paixões que comandam a nossa alma).
László Tóth é um homem igual a nós, com seus defeitos, suas virtudes e uma incrível capacidade de perseverança —motivo que leva Van Buren a desejá-lo tanto (inclusive no aspecto físico).
Van Buren é o típico empresário capitalista que, incapaz de produzir de fato qualquer coisa bela, tem uma inveja metafísica em relação a László que só pode ser compreendida como pura loucura. Para ele, é absolutamente impossível alguém sobreviver no exílio. A obra do húngaro, contudo, é a prova de que, como disse um certo judeu da Galileia, “nem só de pão vive o homem”.
Neste sentido, é fundamental a presença de Erzsébet, a esposa de László, interpretada com uma coragem rara por Felicity Jones. Ela chega aos EUA na segunda metade do filme, mas descobrimos depois que, sem a sua participação, seu marido jamais alcançaria o destino final da sua jornada.
Junto com a sobrinha Zsófia (temporariamente muda por causa das desgraças sofridas na Segunda Guerra), ambas conseguem articular para a posteridade quais eram as verdadeiras intenções de László ao aceitar o convite de Van Buren na hora de construir um monumento que, diante dos olhos dos outros, era uma homenagem ao nada.
É Erzsébet quem salva espiritualmente László, ao expor a quem quiser ver a verdadeira brutalidade da América onde então viviam. Ali nunca foi a casa de ninguém, é o que concluem.
Não há mais lar neste mundo —esta é a lição de trevas aprendida pelo casal. Existem apenas o silêncio do concreto, o exílio da arte e a astúcia de quem olha sempre para o alto (e paga um preço por isso, literalmente).
Brady Corbet faz, no epílogo do seu “antiépico”, a revelação de que todos os sofrimentos são o prenúncio de uma glória maior. Uma glória praticada em fissuras, é verdade, e que deve ser também observada com ironia.
Não à toa que, nos créditos finais, enquanto o espectador lê a dedicatória à memória de Scott Walker, também escuta com surpresa, numa espécie de blague, o hino por excelência de quem trabalha no ramo da subversão artística: “One for You, One for Me”, da dupla italiana de disco music La Bionda.
O recado deve ser compreendido com um sorriso: para sobreviver, é necessário produzir uma obra para os Van Burens da vida, com todos os riscos, e só depois o artista deve criar algo para sua própria satisfação.
No fim, contudo, é também uma lição agridoce demais para quem aceita a brutalidade do mundo como a piada infinita deste grande palco que é o desterro de todos nós.
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