AC trocado por cavalo? Saiba o que é mito e verdade na história do estado que lutou para ser brasileiro
Tratado de Petrópolis comemora 115 anos neste sábado (17). Documento é tido como certidão de nascimento do estado.
Foto: Acre trocado por um cavalo? Saiba o que é mito e verdade na história do estado que lutou para ser brasileiro — Foto: Reproduçã/ Rede Amazônica Acre.
O fim da Revolução Acreana e o Tratado de Petrópolis comemoram, neste sábado (17), 115 anos. Com a assinatura do documento firmado entre o então ministro das relações exteriores, José Maria da Silva Paranhos Júnior, mais conhecido como barão de Rio Branco, com o governo boliviano, o Acre deixou de ser território da Bolívia e se tornou brasileiro.
Para conseguir convencer a Bolívia a vender o estado, o barão negociou áreas alagadas do Mato Grosso e ofereceu ainda a quantia de 2 milhões de libras esterlinas.
Mas, espera aí. Onde entra o tal cavalo branco que teria sido trocado pelas terras que hoje são acreanas? Então, como diz o ditado, senta que lá vem história, até porque as demarcações das fronteiras entre Brasil, Bolívia e Peru foram modificando após um emaranhado de tratados.
Tratado de Madrid
Assinado em 1750, o Tratado de Madrid foi firmado na capital espanhola entre os reis João V de Portugal e Fernando VI de Espanha, para definir os limites entre as respectivas colônias sul-americanas.
“Esse tratado definiu uma linha imaginária do Rio Javari, onde se achava que o rio nascia e a metade do curso entre a boca do Rio Madeira, lá no Solimões e Rio Beni, porque não tinha outra maneira de marcar”, explica o historiador Marcos Vinicius Neves.
Em 1867, o Brasil ainda vivia uma monarquia, porém, a Bolívia já havia se tornado independente e, então, decidiu regularizar a fronteira, que ainda era bastante indefinida, e aí é que entra a história do cavalo branco, que tem um fundo de verdade, segundo o historiador.
O Brasil vivia a guerra do Paraguai, quando coube a Mariano Melgarejo, presidente da Bolívia, conhecido como El Loco Melgarejo, negociar as questões fronteiriças com o cônsul brasileiro Regino Correa.
“A história tem um fundo de verdade, mas, o resultado é mentira. El loco era um ditador sanguinário e era apaixonado por cavalos de raça. O cônsul brasileiro, muito esperto que era, aproveitou esse ponto fraco e, para adquirir a maior vantagem possível pro Brasil, condecorou o presidente da Bolívia com duas medalhas brasileiras e presenteou Mariano com um cavalo de raça puro sangue inglês. A coisa mais linda do mundo”, conta Neves.
Envaidecido com o presente, o presidente boliviano propõe que os dois países não briguem ainda por terras desconhecidas e, sendo assim, apontando no mapa, doou “dois dedos de terra” para o governo brasileiro.
Tratado de Ayacucho
Assim, assinam o Tratado de Ayacucho, quando foram recuadas as fronteiras bolivianas a favor do Império Brasileiro, a partir dos Rios Guaporé e Mamoré, passando por Beni e seguindo uma linha reta que recebeu o nome de Cunha Gomes. As embarcações bolivianas teriam acesso aos rios brasileiros a partir dali.
“Esse triângulo de terra era uma imensa região que se tornou o sul do Amazonas, porque a questão do Acre só surgiu depois. Existiu um presente, que não era uma negociação, era um presente, um regalo. Mas, esse regalo gerou boa vontade do presidente da Bolívia, que presenteou o Brasil com esse triângulo enorme de terras”, pontua.
Porém, essas terras ao norte da linha oblíqua Cunha Gomes nunca fizeram parte do território acreano. Mas, desde o Tratado de Ayacucho (1867), essas terras passaram a fazer parte do estado do Amazonas.
Então, quando começa a ocupação boliviana do Acre, em 1899, o estado já estava povoado por brasileiros desde 1880 e eles não concordavam com as imposições feitas pelo governo boliviano, que cobrava impostos sobre a borracha e até aplicavam punições com chicotadas.
Uma nova interpretação do tratado de Ayacucho chegou a ser feita, o que aumentaria as terras para o Brasil. Esse releitura ficou conhecida como nova inteligência do Tratado de Ayacucho, mas não foi aceita pelo governo boliviano, e é aí que começa a Revolução Acreana.
Tratado de Petrópolis foi assinado no dia 17 de novembro de 1903 — Foto: Departamento de Patrimônio Histórico e Cultural da Fundação Elias Mansour.
Luta por território
O governo brasileiro se nega a apoiar as reivindicações dos brasileiros, mas, mesmo assim, a batalha se estendeu por quatro anos – de 1899 a 1903.
“Quando o novo presidente do Brasil, Rodrigues Alves, assume, ele convida José Maria da Silva Paranhos Júnior, mais conhecido como barão de Rio Branco, para ser ministro das relações exteriores no Brasil”, conta Neves.
A disputa, então, tem uma trégua e é assinado o Tratado de Petrópolis, tido como a certidão de nascimento do Acre. A partir daí, o conflito com os bolivianos cessa, mas o Brasil também precisava entrar em acordo com os peruanos.
“Então, começa uma nova rodada de negociações entre o barão de Rio Branco e o governo do Peru para regularizar a questão do Juruá. Até que, em 1909, o Brasil e o Peru assinam também o Tratado do Rio de Janeiro e resolvem o problema de litígio sobre o Acre”, complementa o historiador.
Fronteira cultural milenar
Toda essa história divide, mas também une os países no que diz respeito à questão cultural. Na culinária, Neves relembra de um salgado que é o queridinho dos acreanos: a saltenha. Uma receita típica da Bolívia.
“Aí tem o encontro das culturas andina e amazônica, que são completamente diferentes, mas que abrem espaço para essas interpenetrações que têm influências em cada uma das tradições culturais”, destaca.
Prova disso também é o Santo Daime, religião criada no estado acreano, mas que surgiu por influências peruanas, de onde sai o Ayahuasca.
“Segundo as linhas de origem da religião, foi com um índio peruano que o mestre Irineu Serra aprendeu a usar Ayahuasca, que se tornou o Santo Daime. Então, a fronteira é o que separa, o que diferencia, mas também é o que une, que promove essa interação entre os povos. É essa dinâmica de fronteira que enriquece a cultura”, enfatiza o historiador.
E Neves vai além ao afirmar que, apesar de todos os tratados, guerras, lutas por território, a tríplice fronteira sempre esteve presente e foi ponto de encontro de diversas vertentes culturais.
“As pesquisas arqueológicas e o estudos das populações indígenas históricas do Acre, Bolívia e Peru mostram, em alguma medida, que essa tríplice fronteira já existia. O Acre com os geoglifos, a Bolívia, que tinha uma comunidade com cultura avançada, e o Peru, com os incas e ashaninkas, os povos da montanha”, destaca.
Tudo isso mostra que as influências culturais fugiam, inclusive, do domínio dos homens na luta por terras.
“Então, é um ponto de encontro de três áreas culturais há 3 mil anos. Não é à toa, portanto, que aqui se formou a fronteira entre três países, que nada mais são do que o reflexo dessa fronteira cultural milenar que vem desde antes da chegada do europeu na América”, finaliza.
Tríplice fronteira une mistura de culturas andinas e amazônicas — Foto: Arthur Santos/Arquivo pessoal. Tácita Muniz , G1 AC.