Arthur Pirino
Donald Trump convidou Elon Musk e Vivek Ramaswamy para comandar uma ampla reforma na máquina pública americana. Musk todos conhecem. Ele já conseguiu fazer um foguete dar ré, pôs mais de 6 000 satélites em órbita, com sua Starlink, e está perto de fabricar o primeiro humanoide realmente útil. Isso além da Tesla e uma montanha de coisas. Vivek é menos conhecido. Filho de imigrantes indianos, formado em Harvard, ficou milionário com biotecnologia. Ambos traduzem a ideia do self-made man. Gostam de ideias libertárias, governos enxutos, regras de mercado simples e estáveis e têm um culto obsessivo pela inovação. Isso além de alguns valores: gosto pelo mérito, liberdade de expressão, horror à retórica woke. Com um perfil desses, são vistos com desconfiança por boa parte do establishment. Mas não pelo common sense, como parece ter ficado claro nas eleições.
Em um artigo no The Wall Street Journal, eles apresentaram seu argumento: os “pais fundadores”, que criaram os EUA, “não queriam que um punhado de burocratas tomasse as decisões em nome da sociedade”. Queriam que políticos eleitos fizessem isso, nos limites da Constituição. Na prática, significa fazer uma lipoaspiração em gastos e regulamentações não aprovados pelo Congresso e que podem ser eliminados por decisão do governo. Leia-se: de Trump. A suposição mais ampla: a globalização está a pleno vapor. Há uma guerra comercial em curso com os chineses, e eles estão ganhando o jogo, em muitas frentes.
Na Europa, a venda de veículos elétricos chineses saltou de 2% para 14% nos últimos quatro anos. Nos EUA, Biden aumentou em quatro vezes a tarifa de importação sobre os elétricos orientais. A guerra tarifária atende à pressão dos lobbies, no curto prazo, mas é insustentável. Gera danos à competitividade e pune os consumidores. A solução é aumentar a eficiência. Não se trata do simples gosto por ideias libertárias, mas de urgência econômica. Países que insistem em transferir a suas empresas o custo da ineficiência pública, a burocracia e a imprevisibilidade jurídica perderão o jogo. E é aí que entra a reforma, o único caminho para reduzir impostos e recuperar terreno na competição global, sem estourar a dívida pública. Coisa que conhecemos bastante bem, por aqui.
“Por que somos um país tão vulnerável a grupos de pressão?”
A pergunta que nos interessa: enquanto os americanos, com sua carga tributária mais baixa e uma produtividade quatro vezes maior, apostam em uma reforma radical, o que nós andamos fazendo? Sob qualquer ângulo, somos nós que temos urgência de uma reforma desse tipo. Isso pelo fato simples de que somos um país pobre, com uma economia de baixa produtividade e um Estado pouquíssimo eficiente. No índice de liberdade econômica da Heritage Foundation, ocupamos a posição de número 124, em 184 países. Nossa pior performance vem exatamente dos quesitos gasto governamental e saúde fiscal. Quanto à eficiência, a situação ainda é pior. Ainda neste ano, o IBPT fez um estudo comparando trinta países com carta tributária alta e o bem-estar gerado, medido pelo IDH. Não deu outra: ocupamos a última posição. Ou seja, impostos altos, beirando os 33% do PIB, e produtividade estagnada, com a honrosa exceção do agronegócio. Não seria um convite para uma reforma tão ou mais rigorosa do que a que pretendem Musk e Vivek?
Fernando Gabeira escreveu: “O Brasil não reduz os custos da máquina porque as forças que ganham com isso não deixam”. Está certo. Por que um deputado cortaria dinheiro do fundão eleitoral, ou das emendas, de seus penduricalhos, se não há ninguém cobrando nada disso? Temas de reforma do Estado são maçantes. Há três anos o Congresso aprovou a PEC Emergencial, prometendo reduzir os gastos tributários, ou incentivos fiscais, de 4,25% para 2% do PIB, em oito anos. Isso está lá, na Constituição. Pois é. O Congresso aprovou alguma coisa? O país discutiu o assunto, entre uma e outra conversa sobre as gafes da Janja e o padre golpista? Vale o mesmo para a avaliação de desempenho do funcionalismo. A regra está lá, aprovada há 36 anos, na Constituição. Basta regulamentar. Algum governo se preocupou com isso? Em muita coisa, até retrocedemos. A lei das estatais foi desativada, por mais de um ano, por uma decisão no Supremo. Os processos de privatização, paralisados. A reforma administrativa descansa em alguma gaveta. E dias atrás soubemos que o ministro Flávio Dino mandou reduzir para 52 anos a idade de aposentadoria das policiais civis e federais. Derrubou uma emenda constitucional, sem ninguém fazer ideia de quanto isso custará aos pagadores de impostos. Em especial para o trabalhador ordinário, cuja idade mínima para se aposentar continua lá, aos 65 anos.
Afora isto, há o que é simples privilégio. Ainda recentemente, a Alemanha restringiu o uso de jatinhos oficiais por autoridades. A maior parte dos países europeus já faz isso, há tempo. Então, por que cargas d’água há mais de cinquenta autoridades com esse “direito” liberado por aqui? Porque somos ricos, e eles são pobres? Não creio. E por que voltamos a pagar quinquênios, justamente para quem ganha mais, no setor público, se isto foi extinto pelo Congresso, ainda no final dos anos 90? A pergunta simples: por que somos um país tão vulnerável a grupos de pressão? Há muitas explicações. A predominância do Estado sobre a sociedade. Nossas duas longas ditaduras, no século XX. A ideia de que nunca se enraizou, por aqui, uma cultura liberal, fundada na impessoalidade da regra, como tão bem expressou Sérgio Buarque. Uma cultura em que o centro do sistema não é o indivíduo, o cidadão e seus direitos — seja o aluno e seu direito de aprender, seja o pagador de impostos e seu direito a um governo eficiente.
Minha intuição: nossa vulnerabilidade vem da combinação da pobreza com a desigualdade. O fato de que somos um país em que 90% da população ganha menos de 3 500 reais mensais. Uma imensa maioria sub-representada nos centros de poder e um estamento, feito da captura do Estado, super-representado. É daí que se torna plausível desde torrar 5 bilhões de reais, a cada dois anos, em campanhas eleitorais, manter o Parlamento mais caro do planeta, preservar toda sorte de incentivos ao setor privado e alguns milhares de altos funcionários recebendo sistematicamente acima do teto. Tudo feito com boas justificações. É nossa síndrome do barão de Cotegipe, o último senador a defender a escravidão, naquela tarde quente de domingo, no Rio, na votação da Lei Áurea. “E os direitos adquiridos?”, bradava o velho senador. E qual será “a sorte dos libertos, hoje alimentados, vestidos e tratados” por seus proprietários? Seu discurso é a síntese de nosso conservadorismo atávico: direitos adquiridos, procrastinação e um paternalismo malandro. Quem sabe seja hora de dispensarmos o fantasma do barão, que continua por aí, e arrumarmos um Musk, criado por aqui mesmo. Ou ao menos um pouco de sua impaciência com isso tudo. Não sei se será agora que faremos isto. Mas em algum momento teremos de fazer.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
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Publicado em VEJA de 29 de novembro de 2024, edição nº 2921