NOSSAS REDES

POLÍTICA

Nossa herança comum | VEJA

PUBLICADO

em

Nossa herança comum | VEJA

Arthur Pirino

J.D. Vance fez um discurso inusitado na Conferência de Segurança europeia, em Munique. Plateia repleta de líderes do continente, grande expectativa, esperava-se que ele falasse de Putin, da guerra, mas Vance não se abalou: “O problema de vocês não são as ameaças que vêm da Rússia nem a China, mas o perigo que vem de dentro”, disse. E completou: “O recuo da Europa em seus valores mais fundamentais, que são os mesmos dos Estados Unidos”. Generosidade dele. Os valores europeus nunca foram os mesmos que os da formação americana. A inspiração que veio de Locke, Milton e do liberalismo inglês, que andava na cabeça dos fundadores da América, sempre foi um recorte muito específico da tradição europeia. O Velho Continente nunca teve nada semelhante à Primeira Emenda, garantindo a liberdade de expressão. E vem daí a raiva provocada pela fala de Vance. Na prática, ele deu um sermão na liderança europeia com base em deuses ou, ao menos, em credos não tão comuns assim.

Vance fez nove acusações. Quatro dizem respeito à agenda woke. Coisas como a prisão de Adam Smith-Connor, um fisioterapeuta condenado por rezar perto de uma clínica de aborto, na Inglaterra. Outras têm a ver com a censura e a intolerância política. Tudo bem representado, na visão de Vance, pelos firewalls, a prática de isolar a direita no jogo político. A lógica que foi se tornando comum, nos anos recentes, segundo a qual há uma “extrema direita” ilegítima e que, como tal, não deve ser admitida na democracia. O conceito é elástico e pode incluir Trump, um libertário como Milei, um partido direitista como a Alternativa para a Alemanha (AfD) ou o tradicionalismo francês de Marine Le Pen. Diria que qualquer um que Anne Apple­baum e alguns colunistas do Times resolvam chamar de “autocratas” é candidato à lista. A eleição de Trump criou um problema para essa turma, visto ser ridículo tratar um presidente eleito com maioria sólida no Congresso como uma espécie de marginal.

O fato mais grave citado por Vance diz respeito ao cancelamento das eleições presidenciais na Romênia em dezembro. Calin Georgescu, engenheiro agrícola de “extrema direita”, ganhou as eleições e a Corte Constitucional mandou fazer novas eleições. O motivo: suspeitas de dinheiro russo impulsionando contas do TikTok em apoio a Georgescu. Causando “desordem informacional” na cabeça do “eleitor ordinário”, para dar um toque brasileiro ao problema. Se a moda pegar, a cada vez que o povo votar errado basta a Suprema Corte anular as eleições e fazer a turma votar de novo. Vance foi direto: “Se você foge assustado de seus próprios eleitores, nem os EUA podem salvá-lo”.

Vance fez em seu discurso uma forte defesa de um velho conceito nascido no coração da Europa: a ideia das sociedades abertas. O conceito foi usado por Karl Popper em seu livro escrito sob o trauma da Segunda Guerra. Ele diz, em essência, que nosso destino, como sociedade, é aprendermos a viver junto com pessoas que divergem fundamentalmente de nós. De nossos valores, da maneira como enxergamos a vida, das relações entre homens e mulheres e do destino humano. Daí a frase de Vance sobre respeitar os direitos de nossos “oponentes”, em vez de colocá-los na cadeia, “seja o líder da oposição, seja um cristão rezando ou um jornalista tentando relatar as notícias”. E aqui é preciso ser claro: Vance tem razão. E suas razões vêm do fundo do próprio aprendizado europeu. Da renúncia a mandar os hereges para a fogueira, contrarrevolucionários para a guilhotina ou judeus para campos de concentração.

A ideia das sociedades abertas foi a pedra de toque das democracias liberais à época da Guerra Fria e depois da queda do Muro de Berlim. Época que o pensador conservador N.S. Lyons bem chamou de “longo século XX”, marcada pelo “é proibido proibir”, de maio de 68, e pelo otimismo liberal de Fukuyama, bem depois, com seu “fim da história”. De alguns anos para cá, essas coisas mudaram. Da celebração da liberdade, fomos mergulhando na era do “controle”. Lyons e muitos conservadores culpam a própria ideia das sociedades abertas pelo desmoronamento. Nossa civilização teria cedido a uma ideia empobrecida da política como técnica. A noção do Estado fundado em procedimentos “neutros” feitos de “processos burocráticos, decisões judiciais e comissões tecnocráticas”. A visão é caricatural, mas faz sentido: instituições sem “alma”, destituídas de base de valores, acreditando na ingênua ideia de neutralidade do Estado diante da diversidade de visões de mundo.

Continua após a publicidade

“Não se pode converter a moralidade privada em régua ética”

Lyons está errado. E arrisco dizer que a velha ideia de Popper nunca foi tão necessária. Digo mais: os males de nossa civilização provêm exatamente da traição aos valores das sociedades abertas, e não o contrário. Mesmo sendo um conservador, foi exatamente isso o que disse Vance. O que aconteceu, nas últimas duas décadas, foi o lento processo de captura do Estado por um novo tipo de ideologia. Quando uma Corte Constitucional diz que esse ou aquele grupo não é legítimo para ganhar uma eleição, que certos tipos de opinião são inaceitáveis no debate público, o sinal é claro: a premissa da neutralidade das instituições foi atirada pela janela. Quando a educação pública se subordina a premissas dadas pelos movimentos identitários, temos o mesmo fenômeno. E, por óbvio, quando chegamos ao ponto de o sujeito ser preso por rezar em silêncio, há muito se cruzou uma fronteira.

Não deixa de ser curioso que Vance, ele mesmo um conservador, tenha feito um discurso em defesa das sociedades abertas. E o fez por uma simples razão: porque não há outra saída. Se Vance reivindica o direito de Smith-­Connor rezar perto daquela clínica, no Reino Unido, terá de aceitar que uma ativista feminista defenda o direito ao aborto em alguma outra calçada. Isso vale para católicos, protestantes e para toda sorte de predileções. Dias atrás li sobre o 4B, uma nova seita de mulheres que não quer conversa com o sexo masculino. E há quem viva imitando cães e tartarugas por aí. O que nenhum desses agrupamentos está autorizado a fazer é converter sua moralidade privada na régua ética para a sociedade. É esse o ensinamento singelo de Popper. Isso pode irritar a esquerda, seduzida pela cultura woke. E a um certo conservadorismo que parece sonhar em fazer o mesmo a partir dos “valores tradicionais”. Mas a verdade é que a ideia liberal vem do fundo da própria tradição europeia. Do aprendizado com as guerras de religião, que fez Locke escrever suas cartas sobre a tolerância; do horror com o fanatismo religioso, que fez Voltaire dobrar a Justiça francesa, no caso Jean Calas; da reação à injustiça movida pelo ódio político e racial, que fez Zola escrever seu “J’Accuse…!”. Tudo isso pertence à Europa. Mas é também a nossa herança. Nossa melhor herança, da qual não deveríamos abrir mão.

Continua após a publicidade

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 21 de fevereiro de 2025, edição nº 2932



Leia Mais: Veja

Advertisement
Comentários

Warning: Undefined variable $user_ID in /home/u824415267/domains/acre.com.br/public_html/wp-content/themes/zox-news/comments.php on line 48

You must be logged in to post a comment Login

Comente aqui

POLÍTICA

A ‘mão de ferro’ de Janja e a ‘hora da sopa’ de Lula

PUBLICADO

em

A ‘mão de ferro’ de Janja e a ‘hora da sopa’ de Lula

Gustavo Maia

Diante da conhecida “mão de ferro” da primeira-dama Janja sobre o marido no Palácio da Alvorada, residência oficial do presidente em Brasília, petistas passaram a ironizar que o fim do expediente de Lula no Planalto, geralmente por volta das 18h, virou a “hora da sopa”. Depois disso, praticamente não há quem consiga falar com ele.

Janja, aliás, foi tida por aliados de Lula como o principal alvo da carta do advogado Antonio Carlos de Almeida Castro, conhecido como Kakay, em que ele aponta que o presidente, neste terceiro mandato, está “isolado”, “capturado”, por circunstâncias diversas, “principalmente pessoais”. Mais até que o ministro da Casa Civil, Rui Costa, que também tem sido bastante criticado.

“Mas o Lula do 3º mandato , por circunstâncias diversas, políticas e principalmente pessoais, é outro. Não faz política. Está isolado. Capturado. Não tem ao seu lado pessoas com capacidade de falar o que ele teria que ouvir. Não recebe mais os velhos amigos políticos e perdeu o que tinha de melhor: sua inigualável capacidade de seduzir, de ouvir, de olhar a cena política”, escreveu Kakay.

Na primeira solenidade pública após a divulgação do texto, na terça-feira, aliados de Lula notaram o quanto Janja estava discreta e até mesmo apagada — durante a recepção a Marcelo Rebelo de Sousa, presidente de Portugal, no Itamaraty, na terça.



Leia Mais: Veja

Continue lendo

POLÍTICA

Enfraquecido, governo Lula se rende de novo a Davi…

PUBLICADO

em

Enfraquecido, governo Lula se rende de novo a Davi...

Daniel Pereira

Desde o início do terceiro mandato de Lula, o governo considera menos turbulenta a relação política com o Senado do que com a Câmara. Com a esperada reforma ministerial, o presidente da República espera melhorar a articulação com as duas Casas, ampliando o espaço e o poder dos parlamentares na Esplanada. Enquanto esse rearranjo não ocorre, o mandatário faz o que pode para agradar ao senador Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), o novo chefe do Poder Legislativo.

Até aqui, a parceria entre as partes tem rendido dividendos para ambos os lados. Na quarta-feira 19, um dia após a apresentação da denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o ex-presidente Jair Bolsonaro por tentativa de golpe de Estado, Alcolumbre indicou que o projeto que anistia condenados por atos golpistas não será pautado, porque, segundo ele, divide a sociedade e não interessa ao país. “Isso não é um assunto que nós estamos debatendo”, afirmou. “Não é um assunto dos brasileiros”.

A declaração foi dada no mesmo dia em que o Senado, sob a batuta de Alcolumbre, reverteu uma decisão anterior do governo e — agora com o aval dos próprios governistas — aprovou um projeto que autoriza o pagamento de emendas parlamentares de orçamentos anteriores, criando uma conta estimada em pelo menos 2,6 bilhões de reais. Desde a sua volta ao comando da Casa, foi a primeira vitória do senador, que acumulou poder nos últimos anos justamente por controlar boa parte do bolo das emendas. Foi assim no governo Bolsonaro. Será assim, ao que tudo indica, sob Lula.

O petróleo é nosso

Aliados de conveniência, Lula e Alcolumbre são defensores da exploração de petróleo na Foz do Amazonas, que pode ajudar no desenvolvimento econômico do país e de uma série de estados, como o Amapá, berço eleitoral do senador. Na primeira metade de seu mandato, o presidente pouco tratou do assunto em público, mas com a mudança na cúpula do Congresso ele entrou de vez no debate, motivado por uma cobrança do senador.

Na primeira audiência que teve com Lula após ser eleito para a chefia do Senado, Alcolumbre reclamou da demora do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para emitir a licença ambiental que pode abrir caminho para a exploração de petróleo na Foz do Amazonas.

Continua após a publicidade

O petista anotou o recado e dias depois, numa entrevista a uma rádio, defendeu o projeto, alegando que a exploração de petróleo na chamada “margem equatorial” pode ser realizada sem prejudicar o meio ambiente. Não parou por aí.

Em outra entrevista, concedida em Macapá, para onde viajou na companhia de Alcolumbre, Lula criticou o que chamou de “lenga lenga” do Ibama para autorizar a pesquisa sobre a exploração de petróleo na região. É aquela história: quanto mais enfraquecido um governo, maior a necessidade de afagar aliados.



Leia Mais: Veja

Continue lendo

POLÍTICA

Lula diz que nem ministros sabem o que governo est…

PUBLICADO

em

Lula diz que nem ministros sabem o que governo est...

Lucas Mathias

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) afirmou, na comemoração dos 45 anos do Partido dos Trabalhadores, neste sábado, 22, que ouviu durante uma reunião ministerial nas últimas semanas que seus ministros não sabem o que tem sido feito no governo. O recado, segundo o presidente, é retrato da postura do Planalto, que não tem comunicado seus feitos como gostaria, o que tem reflexo na população. “Ora, se o ministério não sabe, o povo, muito menos”, afirmou. A celebração da sigla acontece no Centro da cidade do Rio de Janeiro. 

A declaração de Lula foi dada ao final de sua fala, que durou cerca de 50 minutos, no evento. O presidente foi o último a pegar o microfone e discursar no palco, para centenas de apoiadores e militantes do partido. Ao reconhecer as falhas na comunicação de seu governo, o mandatário reconheceu que o problema dificulta, inclusive, a atuação dos petistas nas ruas. 

“Cabe ao governo fazer as coisas corretas e dar informação para vocês. Porque um governo que não dá informações, às vezes, não tem como militante defender. E eu sei que nós não demos as informações”, ponderou. 

Em seguida, Lula citou o episódio da reunião ministerial, antes de prometer maior clareza na divulgação dos atos governamentais. 

“Fiz uma reunião ministerial faz mais ou menos vinte dias. E eu descobri na reunião, Gleisi, que o ministério do meu governo não sabe o que nós estamos fazendo. Ora, se o ministério não sabe, o povo, muito menos. Então, companheiros, agora vocês vão saber”, completou.

Continua após a publicidade

A forte fala de Lula vem pouco mais de um mês depois de o presidente trocar seu ministro da Secretaria de Comunicação, ao dar posse para Sidônio Palmeira, que assumiu o lugar até então ocupado pelo deputado federal Paulo Pimenta (PT-RS). 

Para as próximas semanas, ainda está prevista uma reforma ministerial, que pode dar mais espaço a outros partidos na Esplanada e promover uma dança das cadeiras no desenho atual — outro sintoma acusado na declaração do petista. 



Leia Mais: Veja

Continue lendo

MAIS LIDAS