O ano de 2024 ficará conhecido entre nós como aquele em que se deu a aceleração dos efeitos do aquecimento global em nosso território; o momento em que as advertências se tornaram realidade. Ou, parafraseando o personagem falido de Hemingway, o ano em que deixamos o território do “gradualmente” para adentrar a esfera do “subitamente”.
Que outro entendimento seria possível diante das evidências das enchentes no Sul, dos incêndios que quase dobraram em relação ao ano anterior e da maior seca dos últimos 70 anos? Ainda que 2024 venha a se mostrar um ponto fora da curva, o quadro vivido evidencia que estamos entre os países mais vulneráveis aos efeitos do aquecimento. Estudo recente da Cepal (comissão econômica para a América Latina) estima que a região possa perder mais de 12% do seu PIB anual até 2050 em razão dos eventos climáticos.
Antes que as primeiras chuvas lavem a memória do fogo, precisamos fortalecer nossa determinação de enfrentar o problema. Para tanto, serão necessários o desenho de estratégias claras e a alocação de recursos, tanto para a adaptação ao novo cenário quanto para a mitigação do aquecimento global através da redução de emissões de gases de efeito estufa (GEE).
A adaptação visa a reduzir a vulnerabilidade de pessoas, ecossistemas e infraestruturas aos eventos climáticos extremos. Consiste, por exemplo, na relocalização de populações em áreas vulneráveis e investimentos para detecção e combate ao fogo. É indispensável e enfrenta menor resistência dos políticos por gerar resultados imediatos e visíveis, mas não ataca as causas do aquecimento; apenas suas consequências. Apresenta, porém, a vantagem de poder ser executada autonomamente pelo país, sendo necessário, quando muito, alinhar-se com países vizinhos em casos pontuais.
Já a mitigação pressupõe um entendimento global, uma vez que não há fronteiras na atmosfera e os GEE emitidos por qualquer país geram efeitos para toda a Terra. É dessa questão que tratarei.
O desafio da mitigação apresenta-se nos seguintes termos gerais:
1) as emissões de GEE do mundo crescem desde a Revolução Industrial, com aceleração notável após a Segunda Guerra e novamente após o ano 2000. Hoje encontram-se em nível recorde em torno de 55 bilhões de toneladas-ano;
2) a ciência indica que, para limitar o aquecimento global a 1,5ºC ou 2ºC, será necessário reduzir a zero as emissões até 2050;
3) na conferência do clima (COP) de 2015 foi firmado o Acordo de Paris, no qual nações representando 98% das emissões globais comprometem-se a zerar suas emissões, com poucos países estendendo o compromisso além de 2050;
4) as evidências indicam que a implementação do acordo não vai bem. Os planos apresentados pelos países até agora apontam para uma elevação de 2,7ºC, muito superior ao tolerável e aproximadamente o dobro de elevação já incorrida. Mais grave ainda, o crescimento contínuo das emissões indica que nem mesmo esses planos estão sendo cumpridos.
Nesse cenário, acredito caber ao Brasil um papel relevante na superação do desafio. Podemos sonhar grande e buscar construir na COP30 o “Acordo de Belém”, um ponto de inflexão no caminho ao “net zero”.
Energia Limpa
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O acordo consistiria basicamente no estabelecimento das precondições para a adoção de um preço global para o carbono.
Por que isso é importante?
O aquecimento global decorre de uma grande falha da economia de mercado. A não existência de um preço para as emissões de GEE levou a um uso abusivo desse recurso, culminando na situação em que qualquer emissão adicional provoca aquecimento. Já há pelo menos 30 anos sabe-se disso, e os economistas são unânimes em apontar a necessidade de um preço global para o carbono, como forma de desestimular as emissões e tornar competitivas mais rapidamente as “tecnologias verdes”, acelerando sua adoção.
Tudo parece muito lógico e razoável, a não ser pelo fato de que os maiores emissores atuais —China, EUA e Rússia— recusam-se a analisar seriamente a proposta. Essa situação me leva a pensar no aquecimento global como resultado de um “furto continuado”; nações mais ricas se apropriam de um recurso que pertence a todos (a capacidade da atmosfera de comportar GEE) e acham natural não pagar nada por isso. O mesmo raciocínio aplica-se se substituirmos “nações mais ricas” por “pessoas mais ricas”; todos os que estamos entre os 50% mais ricos do globo nos beneficiamos também desse “furto”, na medida em que nosso consumo implica emissões acima da média mundial.
Como funcionaria?
Diante da impossibilidade da implantação imediata de um preço global, o “Acordo de Belém” partiria do arcabouço do mercado regional de carbono mais desenvolvido atualmente, que é o da UE (União Europeia). A ideia é negociar a criação de um “Mercado Comum de Carbono” (MCC) mediante a adesão progressiva de diversas nações aos preceitos e parâmetros do mercado europeu. Países com mercados desenvolvidos, como Japão, Coreia do Sul e Austrália, poderiam ser os primeiros a aderir.
No caso do Brasil, por exemplo, a contrapartida para a adesão ao sistema de “cap and trade” europeu poderia ser a medição correta das emissões da agropecuária tropical, muito inferiores às das regiões temperadas, cujos parâmetros hoje são aplicados globalmente. A perspectiva de adiamento da lei antidesmatamento da UE, em que pese a justa frustração de muitos ambientalistas, augura positivamente quanto às possibilidades de negociação.
O mecanismo de imposto de carbono na fronteira (Cbam), aplicado pela UE para evitar a competição desleal por parte de países que não taxam o carbono, seria estendido para as fronteiras dos países-membros do MCC, que passariam a gozar de isenção, constituindo um poderoso mecanismo de atração para novos países.
À medida que as adesões evoluíssem e o mercado crescesse, cresceria também o ônus —moral e econômico— da não participação. Estariam assim lançados os princípios que poderão levar progressivamente a um preço global para o carbono, catalisando a adoção de novas tecnologias e aumentando as chances de estancar o processo de aquecimento da Terra.
A COP30, em Belém, apresenta o cenário ideal para que o Brasil assuma um papel de destaque no ciclo econômico de baixo carbono. Se não o fizer agora, quando o fará?
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