Obaluayiê é o “senhor da terra”. Essa divindade, comumente associada à cura e às doenças, carrega em sua figura uma conexão direta com a terra e com os ciclos da existência humana. Obaluayiê é um orixá de grande poder, frequentemente representado coberto por palhas que escondem seu rosto, simbolizando sua relação com o desconhecido, o segredo e o imaterial.
O orixá das palhas também se relaciona aos processos naturais de vida e morte. Ele representa a renovação, ao mesmo tempo em que é inevitável. Mas Obaluayiê não é a morte propriamente dita, pois também é a vida. Ele é a terra.
É na terra que tudo se cria, e é na terra que tudo termina. Essa pode ser uma hipótese que nos leva a refletir sobre as razões pelas quais Obaluayiê também está associado ao astro-rei, o Sol, uma vez que é imenso, central e absolutamente necessário para a manutenção de qualquer tipo de vida.
Outra razão é que, na sabedoria dos povos ancestrais, já se sabia que o Sol é cura para muitas doenças, sendo fonte de energia e regeneração. Ao mesmo tempo, ele pode queimar e produzir eventos de proporções gigantescas.
Desta vez, não vou contar um itã, mas lembrar uma história recente que se conecta com a importância da terra. Aconteceu quando assisti a uma fala de Júlio Medaglia, meu confrade na Academia Paulista de Letras. Medaglia realiza um trabalho incansável pela música clássica brasileira, mantendo até hoje o programa “Prelúdio”, na TV Cultura, o único que promove audições, oferece treinamento e forma e estabelece parcerias com orquestras ao redor do mundo, com estrutura para receber e desenvolver talentos. Há muitas temporadas ele apresenta o programa com a jornalista e produtora musical Roberta Martinelli.
Em tempos em que a música é reduzida ao que a indústria molda, Medaglia nos lembra dos tempos áureos dos Festivais da Música Popular Brasileira, na TV Record, dos quais foi jurado e que revolucionaram a música, provando que o público reconhece música de qualidade. Daí a importância de valorizar talentos brasileiros que lutam por um espaço nos tempos atuais. Pessoas com dom, que estudam, se dedicam e esperançam, apesar de o país fechar tantas portas para o que é autêntico.
Naquela ocasião, Medaglia mencionou seu encontro com Astor Piazzolla, um dos maiores mestres do tango, quando estiveram juntos por um bom tempo na Alemanha. Durante um passeio por uma vinícola, Piazzolla lhe disse algo que ficou marcado: “A boa música é como o vinho: precisa vir da terra”. Assim como o vinho de qualidade resulta de uma conexão íntima com o solo e com as particularidades do terreno, a boa música também precisa estar enraizada em uma experiência genuína, nas vivências e nas culturas que lhe dão vida.
Essa frase carrega uma metáfora profunda sobre a autenticidade das expressões artísticas. Para que tanto bons vinhos quanto músicas boas possam florescer é preciso regar a terra e alimentar o solo. A boa música atravessa os tempos e o vinho de excelência se distingue em cada safra. A safra é um ciclo dinâmico, em que a terra interage com todos os fenômenos da natureza —a chuva, o sol, o vento, o rio, o mar, o tempo. Tudo encontra a terra. E tudo renasce dela.
Um solo infértil será incapaz de dar frutos, e o que entendemos por indústria cultural não permite uma boa semeadura. Em tempos apressados, de reprodutibilidade técnica e em que métrica de rede social vale mais do que talento, percebemos ainda mais como a analogia com o senhor da terra faz sentido: não temos esperado o tempo de maturação de todas as coisas.
O tempo para que um músico possa sofisticar as suas habilidades, a importância de regar as oportunidades para que isso aconteça, os frutos que serão dados à humanidade através da arte. Nesse sentido, “Prelúdio” é a síntese perfeita: é a ação inicial, o primeiro passo, a primeira etapa, o plantar e regar talentos brasileiros que poderão florescer e dar frutos, trazer beleza e alimentar de encantos a vida.
Obaluaiyê, o guerreiro, é amado pelo panteão dos Oborós (orixás masculinos) e Yabás (orixás femininas). Embora seja comumente tratado como um sinônimo, Omulu já é conhecido como uma face idosa da divindade. Cultuamos um Deus velho e no candomblé pedimos as bênçãos aos mais velhos. Enxergamos a senioridade como uma conquista e uma dádiva, não como descarte e esquecimento.
Agradecemos por aqueles que seguem alimentando de sonhos a juventude, que são agricultores de talentos, criando novas possibilidades ou enxergando as oportunidades, pois já temos a compreensão de que, no tempo circular, o mais velho continua vivendo através do legado e das sementes plantadas para que o futuro floresça, completando o cio da terra, o processo poético do cultivo e da colheita.
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