NOSSAS REDES

POLÍTICA

O enigma brasileiro | VEJA

PUBLICADO

em

O enigma brasileiro | VEJA

Arthur Pirino

“Tem coisas que têm que ser inexoravelmente do Estado”, disse Lula em uma visita à Telebras, em Brasília. Me chamou a atenção o “têm que ser”. De fato, há coisas estatais, pela sua natureza. O Exército, por exemplo. Ou o Fisco. Mas uma empresa de telecomunicações? Lembrei que foi assim com a Embraer. Era uma questão de “segurança nacional”, como tantas vezes escutei. Haveria “demissões em massa” e infinitas tragédias. Até que privatizaram. E a empresa virou um sucesso. Opera no mundo inteiro, gera seis vezes mais empregos diretos do que antes, mesmo com todo o avanço tecnológico. É um orgulho brasileiro. E com direito a um detalhe: sem problema algum para a soberania nacional.

O assunto voltou à minha cabeça quando lia um artigo detalhando o rombo de 6,7 bilhões de reais de nossas estatais, em 2024. Na lista das que estão no vermelho, chamam atenção os Correios: 3,2 bi de prejuízo. Algumas explicações culpam o governo anterior, como seria previsível, outras lamentam a taxa das blusinhas, que reduziu as encomendas da China. “Tem que criar negócios que tragam receitas”, diz um secretário do governo, em declaração curiosíssima. O que me intriga é nossa teimosia. A privatização dos Correios chegou a ser aprovada pela Câmara, em 2021. Depois das eleições, Lula engavetou o processo. A brincadeira toda agora está custando caro para o contribuinte. Ninguém dá muita bola. De minha parte, a pergunta interessante é: se nosso histórico de privatizações é positivo e somos nós mesmos que pagamos a conta da ineficiência, por que cargas d’água ainda há tanta resistência? A questão me foi colocada por um colega economista. Ele achava aquilo um enigma. Fiquei lhe devendo uma boa resposta.

No fundo é compreensível. A ideia de um Estado grande e paternal vem do fundo da nossa história. Do Estado Novo, daquele sorriso de Vargas, e depois do ufanismo do milagre brasileiro. Alguém me sugeriu uma explicação mais direta: é a “síndrome dos anos 1990”. A tese é de que fizemos uma revolução rápida demais, com aquelas privatizações todas, sem lidar com a cultura do país. Algo na linha: os governos (Collor, Itamar, FHC) ganharam o jogo nas privatizações, mas a esquerda ganhou a guerra retórica e política. Quem não se lembra do barulho infernal sobre o “neoliberalismo”, o “consenso de Washington”, o “desmonte do Estado”, o “FHC bicho-papão” e outros monstrinhos da Parmalat? Sem base empírica nenhuma, mas encharcando (até hoje, em muitos casos) nossos livros didáticos, nossas universidades e os meios de opinião.

A pedra de toque nisso tudo é a ideia algo mágica de que as estatais são “estratégicas”. No caso da Telebras, Lula diz que a empresa é estratégica pois guarda segredos que só o governo deve saber. E que ela é nossa chance de “discutir a inteligência artificial”, em vez de ficar a reboque dos países avançados. De fato, um enigma. Por que raios o país não poderia discutir a inteligência artificial sem depender de uma estatal? Se o presidente desse um pulo em Recife, poderia visitar o Porto Digital, um incrível hub com mais de 430 empresas privadas de tecnologia. Um ótimo exemplo de “privatização”, comandado por uma organização social igualmente privada, que além de tudo é superavitária e não depende de dinheiro do governo.

Durante um bom tempo, o enigma valeu para os aeroportos. Eles também não podiam ser concedidos porque eram estratégicos. Um dia perguntei o porquê disso e escutei que era por causa daquela “casinha lá de cima”, o controle de voo, que “tinha que ser” do governo. Até que um dia não tinha mais, e os aeroportos foram quase todos concedidos. O serviço melhorou incrivelmente, mas o mistério ficou. Foi o mesmo com a telefonia. Devo ter sido um dos últimos brasileiros a comprar uma linha “fixa” de telefone por mil e tantos dólares, nos anos 90. Lembro da minha cara de cachorro molhado quando me dei conta, tempos depois, de que aquela linha “estratégica” não valia mais nada. Culpa da maldita privatização, que inundou o país de telefones. Essas histórias parecem piada. Mas o engraçado é lembrar dos sindicalistas dizendo que aquilo seria nossa grande tragédia, que era “lesa-pátria”, exatamente do mesmo jeito que falam hoje da venda dos Correios.

Continua após a publicidade

“Sejamos claros: estratégico, para o país, é obter resultados civilizatórios”

Tudo isso vem de uma incompreensão sobre o papel do Estado, a clássica confusão entre o “público” e o “estatal”. Por alguma razão, tendemos a achar que se um serviço tem relevância ou utilidade pública precisa ser gerenciado pela máquina do governo. Bobagem. Observe-se o caso recente do Parque Ibirapuera, em São Paulo. Durante anos, a prefeitura gerenciou o parque, gastando dinheiro e com baixa eficiência. Até que um dia fez a concessão. De cara, ganhou uma outorga de 70 milhões de reais. O Ibirapuera melhorou, continua gratuito, cheio de atividades. E público. Só que com gestão 100% privada. Mesmo caso do Hospital do Subúrbio, em Salvador, 100% público e gratuito, do SUS, com gestão 100% privada e fins lucrativos, via PPP. Durante anos, escutamos que a saúde não era mercadoria e coisas do tipo. Retórica malandra. O vital sempre foi a qualidade do serviço na ponta, para as pessoas de carne e osso. Não a retórica fácil da turma que se acostumou a viver pendurada no Estado.

Sejamos claros: estratégico, para o país, é obter resultados civilizatórios. Reduzir a pobreza, estar entre os 30 melhores do Pisa na educação, evitar que pessoas morram na fila de uma unidade de saúde. Estratégico é gastar menos e obter serviços de excelência. Ter uma Osesp, melhor orquestra da América Latina, gerenciada por uma fundação privada. Um hospital como o M’Boi Mirim, em São Paulo, gerenciado em parceria com o Einstein, ou o Hospital Geral de Jundiaí, gerenciado pelo Sírio-Libanês. Ou ainda um parque como o das Cataratas do Iguaçu, uma das mais antigas concessões ambientais do país. Tempos atrás fui lá. Observei o parque cheio, os guias falando três idiomas, a natureza bem cuidada. Tudo gerando receita, em vez de despesa, para o governo.

Continua após a publicidade

Muita gente ainda acha que a agenda de modernização do Estado é conversa de elite. Não é. Os mais ricos se viram perfeitamente bem no mercado. Têm bons planos de saúde, boas escolas privadas e bons condomínios de lazer. Quem precisa de bons serviços públicos são os mais pobres. São eles que estudam em escolas que ensinam pouco e estão entre os 100 milhões de brasileiros sem acesso a esgoto tratado. Se quisermos realmente dar um salto, a primeira coisa seria completar aquela tarefa inconclusa dos anos 1990. Mudar a cabeça, a partir da experiência que o próprio Brasil vem fazendo nas últimas três décadas. No fundo, essa é a grande novidade: para saber o que dá certo, é só olhar para dentro do próprio país. Separar o joio do trigo, saber o que é estratégico e o que não passa de retórica corporativista. Conhecimento para isso já temos. E o mistério, no fundo, fica por conta da nossa teimosia. A cisma de insistir em velhos erros que há muito já não devíamos mais cometer.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 17 de abril de 2025, edição nº 2940



Leia Mais: Veja

Advertisement
Comentários

Warning: Undefined variable $user_ID in /home/u824415267/domains/acre.com.br/public_html/wp-content/themes/zox-news/comments.php on line 48

You must be logged in to post a comment Login

Comente aqui

POLÍTICA

Direita pressiona por anistia colocando projetos p…

PUBLICADO

em

Direita pressiona por anistia colocando projetos p...

Marcela Mattos

Em meio à indefinição sobre como os presidentes da Câmara e do Senado vão resolver o impasse sobre a anistia aos condenados pelos ataques do 8 de janeiro de 2023, parlamentares de direita elevam a pressão sobre o futuro político dos dois caso resistam a dar aval ao projeto.

Tanto o deputado Hugo Motta (Republicanos-PB) quanto o senador Davi Alcolumbre (União-PP) já deixaram clara a intenção de prologar seu período nas funções. Os dois devem tentar renovar seus mandatos parlamentares em 2026 para, na disputa interna de fevereiro de 2027, reeleger-se nos comandos da Câmara e do Senado.

Ao mesmo tempo, a direita trabalha para reforçar suas bancadas no Congresso no próximo pleito. “Me deem 50% da Câmara e do Senado que eu mudo o destino do Brasil”, afirmou o ex-presidente Jair Bolsonaro durante a manifestação na Avenida Paulista no início do mês.

Aliados de Bolsonaro propagam que, caso engavetem o projeto que concede uma anistia, Motta e Alcolumbre dificilmente seriam apoiados novamente pelo ex-presidente. E, se a estratégia de crescer de tamanho se confirme, o apoio da direita pode ser definidor para uma eventual reeleição. “Eles são candidatos e não vão ter como enfrentar a maioria”, diz um dos principais articuladores da anistia.

Até aqui, Hugo Motta e Davi Alcolumbre ainda não se posicionaram com clareza sobre o projeto. Na primeira vez em que tratou do 8 de janeiro, Hugo Motta disse que os atos não foram uma tentativa de golpe, mas sim uma “agressão” às instituições.

Continua após a publicidade

Diante da repercussão causada com a declaração, ele submergiu. No início do mês, o comandante da Câmara voltou a falar sobre o tema, defendeu que haja sensibilidade para corrigir eventuais exageros nas punições, mas afirmou que a anistia não é a pauta única do país.

“O Brasil é muito maior do que isso, nós temos inúmeros desafios. Vamos conversar com o Senado, que faz parte dessa solução também, e conversar com o próprio Judiciário e com o poder Executivo, para que uma solução de pacificação possa ser dada”, disse.

Alcolumbre, por sua vez, já disse que a anistia não pacificaria o país e que não é a pauta prioritária do Senado, mas também já sinalizou para uma modulação para as penas elevadas.



Leia Mais: Veja

Continue lendo

POLÍTICA

Bolsonaro tem episódio de alteração arterial e seg…

PUBLICADO

em

Bolsonaro tem episódio de alteração arterial e seg...

Ricardo Chapola

O ex-presidente Jair Bolsonaro apresentou um episódio de alteração arterial durante sua internação no Hospital DF Star, em Brasília. É o que revelou o boletim médico mais recente, divulgado neste sábado (19). O hospital informou que a situação já foi controlada pela equipe médica e comunicou que Bolsonaro segue sem previsão de alta da UTI. O ex-presidente está internado em Brasília desde semana passada, depois de passar por uma cirurgia de 12 horas para a desobstrução do intestino. Bolsonaro passou mal durante uma agenda política no Rio Grande do Norte. Ele chegou a ser encaminhado para um hospital do estado, mas foi transferido para a capital federal.

“O Hospital DF Star informa que o ex-Presidente Jair Bolsonaro permanece internado na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), em acompanhamento pós-operatório”, diz um trecho do boletim assinado pela equipe chefiada por Cláudio Birolini. O documento também é assinado pelo cardiologistas Leandro Echenique e Brasil Caiado; pelo coordenador de UTI, Antônio Aurélio de Paiva Fagundes Júnior; pelo diretor médico do DF Star Guilherme Meyer e por Allisson Barcelos Borges, diretor-geral do hospital.

Sem visitas e homenagem

O ex-presidente seguirá em jejum via oral e com nutrição parenteral exclusiva devido ao ato de ele ainda não apresentar movimentos intestinais efetivos. Os médicos afirmaram ainda que a programação de Bolsonaro para este sábado é intensificar a fisioterapia motora. De acordo com o boletim médico, a recomendação é de que ele continue sem receber visitas. Foi a sétima e mais longa cirurgia abdominal pela qual Bolsonaro passou desde que sofreu a facada na campanha eleitoral de 2018.

Neste sábado, o ex-presidente publicou nas redes sociais uma homenagem para sua mulher e agradeceu Michelle Bolsonaro pelo apoio dado por ela durante sua internação. “Agradeço a você por todo o apoio e energia que tem depositado neste momento”, escreveu Bolsonaro no post. Trata-se de um vídeo em que a ex-primeira-dama aparece acompanhando o capitão nas caminhadas pelos corredores do hospital de Brasília.



Leia Mais: Veja

Continue lendo

POLÍTICA

Governo Lula anuncia troca de número 2 no Gabinete…

PUBLICADO

em

Governo Lula anuncia troca de número 2 no Gabinete...

Ricardo Chapola

O governo Lula anunciou a troca do número 2 na cadeia de comando do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), órgão responsável pela proteção do presidente e chefiado pelo general da reserva Marcos Antonio Amaro dos Santos. Em decreto publicado no Diário Oficial, o petista confirmou a saída do general de divisão Ivan de Sousa Corrêa Filho, que estava no posto de secretário-executivo do GSI desde maio de 2023 e foi substituído por Washington Rocha Triani, que também é general de divisão do Exército. Antes disso, Triani estava à frente do Comando, Controle e Informação do Departamento de Ciência e Tecnologia da força.

O novo secretário-executivo do GSI é militar desde 1985. Formado em Campinas (SP), foi instrutor da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), comandou o Estado-Maior do Comando Militar da Amazônia e ocupou o cargo de assessor parlamentar do gabinete do Comandante do Exército. Procurada pela reportagem, a assessoria de imprensa do GSI afirmou que a troca de nomes no cargo está dentro da normalidade e segue o fluxo regular da carreira dos oficiais do Exército. Corrêa Filho, por sua vez, que deixou a secretaria-executiva do GSI, foi designado para assumir o Comando de Defesa Cibernética da força.

Crise de confiança

No início do governo Lula, o GSI motivou desconfiança em Lula e na primeira-dama, Rosângela Silva, a Janja. Na época, o então ministro do órgão, general Edson Gonçalves Dias, apareceu em filmagens interagindo com golpistas no dia 8 de janeiro de 2023, quando a Praça dos Três Poderes foi invadida e depredada por apoiadores de Jair Bolsonaro. A divulgação dos vídeos pressionou Dias a pedir demissão. Mesmo assim, Janja exigiu na época que sua segurança deixasse de ser uma responsabilidade do GSI e fosse assumida Polícia Federal (PF). Oficiais da PF também chegaram a cuidar por um tempo da segurança pessoal de Lula, mas a atribuição foi devolvida ao GSI em junho de 2023.



Leia Mais: Veja

Continue lendo

MAIS LIDAS