Edison Veiga
O Museu do Apartheid, em Joanesburgo, é um dos mais chocantes onde já estive. O Memorial do Holocausto, em Berlim, causa vertigens àqueles que se aventuram a atravessar seus labirínticos e intranquilos caminhos. No ano passado, quando fui a Sarajevo, percorri vagarosamente, entre padecimento e amargura, cada metro do Túnel da Esperança — construído durante o famigerado cerco à cidade durante a Guerra da Bósnia, hoje parte de um museu.
São apenas exemplos daquela velha máxima que diz ser preciso conhecer a história para que ela não se repita. No caso, mais do que conhecer: experimentá-la, senti-la de alguma forma, compreender essencialmente o sofrimento das vítimas, dos derrotados, dos oprimidos. Por alguns momentos, ver o mundo sob o ponto de vista daqueles que foram seviciados por episódios de maldade humana.
Pensei muito sobre isso quando estava assistindo ao aclamado filme Ainda Estou Aqui, este sucesso de público e de crítica que vem reverberando em todo o mundo. Acompanhar a história da família de Marcelo Rubens Paiva fazendo parte de uma plateia majoritariamente estrangeira em plena Eslovênia teve um gostinho especial. Amargo, mas especial.
Por que não temos um museu que escancare a violência autoritária da nossa ditadura? Por que não temos um memorial que mostre como, ao contrário do que muitos pensam, havia corrupção naqueles governos de exceção? Por que não temos um espaço em que os visitantes possam vivenciar o ponto de vista das vítimas das atrocidades cometidas por um regime que perseguia o livre-pensamento e combatia discursos, projetos e ideias de igualdade social?
OK, temos o Memorial da Resistência em São Paulo. E, certamente, outros exemplos pelo país. OK, museus que se dedicam à história brasileira do século 20 abordam a ditadura, geralmente com uma postura crítica. Mas não é a mesma coisa — falta um tempero, falta um toque que dê a dimensão dos hediondos crimes perpetrados por agentes a serviço do Estado.
Por quê?
Porque demos um jeitinho nessa história. Porque, na hora de anistiar os perseguidos políticos, o acordo foi também anistiar os torturadores, os assassinos institucionais, os que agiam sem respeitar quaisquer parâmetros de justiça civilizatória.
Dias atrás li no UOL que o Brasil paga 1,8 milhão de reais por ano aos acusados de torturar, matar e ocultar o corpo de Rubens Paiva (1929-1971) — ou a suas viúvas e filhas. Dinheiro este que poderia estar sendo investido na diminuição da desigualdade social. Cabe lembrar que nenhum dos envolvidos no emblemático caso foi julgado.
Reverbera a frase de Ulysses Guimarães: ódio e nojo à ditadura
É apenas a ponta do iceberg de um país que insiste em considerar militares como seres superiores aos demais, supostamente merecedores de benefícios inexistentes para o restante da população. De um país que fez uma transição democrática varrendo para debaixo do tapete do quartel as atrocidades praticadas por aqueles que estiveram, de forma completamente não-democrática, ocupando o poder.
Enquanto assistia ao filme no último sábado, privilegiado por não precisar ler as legendas em esloveno, lembrei-me também de Ulysses Guimarães (1916-1992) que, em seu discurso como presidente da Constituinte, em 1988, declarou:
– Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo.
Que a repercussão nacional e internacional do filme de Walter Salles funcione como lembrete de que um passado como este não pode ter sua volta nem sequer cogitada. E isto é especialmente importante quando o Brasil se tornou solo fértil para negacionistas da ditadura. E crucial em um momento histórico no qual ficou clara a existência, nos estertores da presidência de Jair Bolsonaro, de uma trama golpista — planejada e quase executada pelo alto escalão do governo — que pretendia matar o presidente e o vice eleitos e o ministro do Supremo que então chefiava o Tribunal Superior Eleitoral.
O fantasma da ditadura ainda está aqui.
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