Edison Veiga
Ele faz perguntas. Ele quer entender.
Ele faz perguntas incômodas. Ele quer entender coisas que são difíceis de explicar.
Principalmente, ele não tem a experiência brasileira no traquejo do entendimento do inexplicável. Austero e sisudo, quase sem emoções, ele não iria compreender um meme, ele jamais saberia a dor e a delícia de fazer piada com a desgraça. No caso, a nossa própria desgraça.
Meu oftalmologista esloveno gosta de política e, ao menos esta é a parte que transparece para mim, parece nutrir uma predileção especial pela política brasileira. Da última vez em que lá estive, quase dois anos atrás, tive de explicar para ele por que raios dias depois das eleições algumas pessoas vestidas de amarelo estavam rezando e cantando o Hino Nacional para um pneu. Tentar explicar.
Suei frio para responder. Tentei fazer troça, ele insistiu que queria uma resposta. Usou aqueles argumentos rasos, do tipo: você que é brasileiro precisa me explicar. E o outro, mais raso ainda: você que é jornalista precisa me explicar.
Ele faz perguntas e quer entender. Eu sou um aprendiz de explicador.
Já estou sofrendo por antecipação porque tenho consulta agendada com ele em dezembro. Sinto calafrios noturnos, padeço de insônia. Estou treinando respostas na frente do espelho. Ele vai me encher de perguntas, talvez a consulta demore duas horas.
Como vou explicar para ele essa história de planejarem matar o presidente, o vice, um ministro do STF? Nem desenhando. Conto também que teve homem-bomba na Praça dos Três Poderes? Talvez corra o risco de me complicar demais nas tentativas de explicação…
Falo para ele que teve cadeirada na corrida eleitoral de São Paulo? Existe tradução para cadeirada, meu-deus-do-ceuzinho? Vou ter de contar que a campanha à prefeitura da maior cidade do meu país teve direito até a atestado falso com erros de digitação assinado por médico que já morreu. Ele vai ficar espantado, talvez me pergunte se a bandidagem no Brasil é toda amadora assim ou se há organizações mais profissionais. Nessa hora eu já tenho um plano: vou pedir para tentar ler de novo aquela linha das letrinhas mais miúdas, aquela que nunca consigo por causa da minha miopia na casa dos dois dígitos.
Ele vai querer saber do Rio Grande do Sul, dos alagamentos históricos. Mas vai puxar pelo lado político, talvez me pergunte como o prefeito de Porto Alegre conseguiu ser reeleito mesmo não tendo feito a manutenção das comportas prometida em campanha quatro anos atrás.
As queimadas também serão assunto, porque já o foram da outra vez. Ele vai querer saber como o problema continua, se ninguém está fazendo nada, se não há nada que possa ser feito, se há criminosos por trás ou se é tudo culpa da natureza. Eu vou tentar distraí-lo mudando de assunto: será que vai nevar muito neste inverno?
Mas ele voltará a questões ambientais. Vai querer saber se é verdade que as empresas envolvidas no caso da tragédia de Mariana, em 2015, acabaram de ser absolvidas. Vai me perguntar se é isso mesmo ou se foi algum erro de tradução de quem publicou esta notícia por aqui. Eu vou fazer um hã hã, serei obrigado a admitir que é verdade.
Vou até pensar se vale a pena enxergar bem
Ele vai falar do 8 de janeiro, tenho certeza. No mínimo vai usar alguma expressão meio “a invasão do Capitólio versão brasileira” ou coisa assim. Vai rir quando eu disser que alguns conseguiram fugir para a Argentina.
Como gosta de arte e é fã do Niemeyer, certeza que vai ficar indignado com a depredação do patrimônio, com a destruição de obras, com os danos a itens como As Mulatas, do Di Cavalcanti, ou A Bailarina, do Brecheret.
Vai me interrogar a partir de axiomas. Ou semi-axiomas, porque são verdades que parecem não funcionar no Brasil. “Mas como alguém se diz defensor da pátria e depreda os símbolos desta mesma pátria?” Vou responder que não sei. Vou ensaiar já um sorriso amarelo. Verde e amarelo.
Ele vai perguntar por que a primeira-dama falou o que não devia para o Elon Musk. Vai emendar dizendo “tudo bem, eu também não gosto do Musk, mas se o cara vai ter cargo no governo americano, essas fagulhas institucionais não caem bem”. Vou só balançar a cabeça.
Talvez ele queira continuar o papo da última consulta, sobretudo no tema “medidas sanitárias”, afinal ele é médico. Desta vez não falaremos sobre a negação do uso de máscaras no auge da pandemia ou a recusa em ser um dos primeiros a adquirir vacinas, tópicos estes já exaustivamente discutidos e esgotados dois anos atrás. Mas ele pode vir com “e a ozonioterapia, hein?!”, só para me dar a oportunidade de dizer que, sim, o governo federal sancionou no ano passado uma lei que autoriza a prática dessa pseudoterapia em território nacional.
Vai me perguntar se eu não acho irônico que um ministro responsável pelos Direitos Humanos tenha caído justamente por denúncia de assédio. Se sobrar tempo, ele ainda vai querer saber como anda o caso das joias envolvendo o ex-presidente Bolsonaro. Vai comentar que finalmente prenderam os suspeitos de mandar matar Marielle. Vai tergiversar um pouco, talvez brinque que a seleção brasileira não convence mais, aí vai voltar a falar desse plano de matar o presidente eleito, dar um golpe, acabar de vez com a democracia…
Voltaremos à estaca zero do início da consulta, vou tentar encerrar. Dói tudo, doutor. Dói tudo falar sobre meu país assim. Estou vulnerável, o consultório é seu, não gosto muito desse clima.
Então ele vai prescrever meus novos óculos e eu vou sair de lá pensando se vale mesmo a pena enxergar bem.
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