Rosimarina da Silva Carvalho, uma das vítimas do desabamento da ponte Juscelino Kubitschek, ia para o trabalho na garupa de uma mototáxi na cidade de Estreito, no Maranhão. Os bombeiros que resgataram seu corpo das águas do rio Tocantins informaram que ela vestia o uniforme do trabalho.
A morte de Rosimarina, assim como a das outras vítimas, poderia ter sido evitada se as autoridades tivessem feito direito o trabalho que lhes cabe. Isso será dito nos próximos dias; depois, a indignação se enfraquecerá e seguirá o curso moroso de apuração na burocracia do Estado brasileiro. Outra tragédia ocorrerá em algum lugar do país, e as cobranças por responsabilidades serão ouvidas novamente.
Os nomes das vítimas serão esquecidos por todos, exceto por suas famílias e amigos. No coração deles haverá a pergunta: por que Rosimarina cruzava naquele exato momento em que a ponte desabou? Poderia ter saído de casa mais cedo ou mais tarde e não despencaria junto com a estrutura corroída pelos anos. Indagações desse tipo não são jurídicas ou científicas; são religiosas.
Ainda que responsabilidades sejam apuradas e culpados, punidos, a pergunta religiosa permanecerá: “Por que Rosimarina? Por que minha mãe? Por que minha irmã?” Esses questionamentos não ignoram as causas físicas, históricas e políticas dessa e de todas as tragédias, mas nelas se busca um sentido espiritual para a perda. É o tipo de pergunta que não se faz mais no espaço público, mas continua sendo feita na vida privada e nas comunidades religiosas.
Trata-se do questionamento pelo sentido da experiência humana de sofrimento e morte. O terremoto de Lisboa, em 1755, que matou milhares de pessoas, fez o filósofo Voltaire questionar: “Por que sofremos sob o jugo de um mestre justo? Aqui está o nó fatal que é necessário desatar.” Iluminista que era, Voltaire buscava “desatar o nó” da falta de sentido da tragédia por meio da explicação racional.
Emile Durkheim, em 1912, disse, com outras palavras, que um fiel não busca a religião para “desatar nós explicativos,” mas para encontrar força para seguir vivendo depois de uma tragédia pessoal. O sociólogo francês entendeu que o poder da religião não vinha de sua capacidade explicativa, mas da solidariedade que surgia quando as pessoas se reuniam para compartilhar suas dores e enxugar as lágrimas umas das outras.
Somos “átomos atormentados sobre este amontoado de lama, mas átomos pensantes, átomos cujos olhos, guiados pelo pensamento, mediram os céus,” escreveu Voltaire em um dos versos mais densos do poema sobre o terremoto de Lisboa.
Somos átomos com eternas perguntas religiosas: “Qual o sentido do desabamento da ponte para Rosimarina?” Átomos que indagam os céus sobre tsunamis, terremotos, secas e enchentes. A razão da indagação aos céus não é o desconhecimento das causas naturais das tragédias, mas o inconformismo de que seres humanos sejam somente um ajuntamento de átomos engolfados na lama literal ou, pior, na lama da política.
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Tragédias do passado já foram vistas por religiosos como castigo divino. Fora algum fundamentalista sem noção, teólogos cristãos não fazem mais esse tipo de afirmação de causalidade entre tragédias e Deus. Segundo o pastor Hermes Fernandes, o Deus cristão tem como atributo principal a “onisenciência.” Senciência é um termo usado para descrever a capacidade dos seres humanos e dos animais de sentir prazer e dor. O pastor Hermes afirma que, nas tragédias, Deus sente as dores de todas as pessoas.
Onde estava Deus quando a ponte sobre o rio Tocantins desabou? Ele desceu ao fundo do rio com Rosimarina e as outras vítimas. Deus morreu com Rosimarina, vestida para o trabalho, assim como morreu crucificado em seu filho Jesus. No dia seguinte, foi Natal, e Deus chorou com a família de Rosimarina pelo lugar vazio à mesa.