Daniel Pereira
É inegável a capacidade do presidente Lula de se reerguer. Em 2005, a oposição considerou o primeiro governo dele acabado após o estouro do mensalão — tão acabado que o PSDB, em vez de patrocinar um pedido de impeachment, preferiu deixá-lo sangrando e derrotá-lo nas urnas. A estratégia deu errado, e o petista, sobrevivente do escândalo, conquistou em 2006 a reeleição. Em 2018, Lula nem sequer disputou a corrida ao Palácio do Planalto. Estava preso, inelegível e era considerado carta fora do baralho. Uma reviravolta jurídica, no entanto, permitiu que recuperasse a liberdade, os direitos políticos e, finalmente, o cargo de presidente na eleição de 2022. Hoje, a situação do mandatário não é tão crítica como foi no passado, mas também está longe de ser tranquila. Após dois anos de mandato, Lula enfrenta uma popularidade declinante, uma crise de credibilidade e a pressão do grupo político que controla o Congresso. Nas cordas, ele tem o favoritismo para 2026 contestado até por aliados no plano federal, mas conta com um plano para voltar ao centro do tablado. Um plano de alto risco, que, se falhar, pode fortalecer futuros adversários.
Depois de trocar o comando da comunicação do governo, numa tentativa de melhorar a própria imagem, Lula quer estreitar laços com os novos presidentes da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), e do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), e fortalecer a frágil aliança que mantém com o Centrão. Para facilitar a renovação do acordo entre as partes, o governo já capitulou em pontos importantes no imbróglio sobre as emendas parlamentares. Desistiu, por exemplo, de reduzir o montante dos recursos destinados pelos congressistas a suas bases eleitorais, que chegou a 50 bilhões de reais no ano passado. Durante a campanha, Lula se dizia indignado com esse valor, mas, sem força para confrontar o Congresso, concordou em transformá-lo em piso das emendas. Tudo em nome da governabilidade. O próximo passo é redesenhar a Esplanada dos Ministérios a fim de aumentar os espaços dos partidos que fazem parte da aliança. Com essas iniciativas, o presidente espera que o Centrão ajude o governo a entregar resultados neste ano e, em 2026, entre na campanha à sua reeleição.
A estratégia embute um risco: as siglas receberão as contrapartidas oficiais e desfrutarão das benesses da máquina pública, mas no próximo ano podem optar por uma candidatura rival. A decisão dependerá do desempenho da economia e da popularidade de Lula. Se o presidente estiver fraco, a debandada será certa. É por isso que uma ala petista resiste a novas concessões ao Centrão. Ao analisar a derrota sofrida na eleição municipal, a direção do PT reclamou de “excesso de republicanismo” por parte do presidente e do fato de PSD, PL e União Brasil terem conquistado mais prefeituras do que a esquerda porque se beneficiaram do apelo eleitoral das emendas parlamentares e usaram melhor o poder da máquina estatal. Apesar da chiadeira interna, Lula quer pagar para ver. A nova etapa de sua estratégia de reação começou com os gestos de mesura de praxe. Ele divulgou uma nota para parabenizar as eleições de Motta e Alcolumbre e, depois, recebeu os dois parlamentares no Palácio do Planalto. Como bom anfitrião, elogiou os convidados: “Eu estou muito feliz porque, primeiro, sou amigo dos dois. Tenho conhecimento do compromisso democrático que os dois têm”, declarou o presidente. Diante dos holofotes, Motta e Alcolumbre prometeram trabalhar em parceria com o governo e ajudar o país.
![3—dee69e5c5bbe3557ab7a1f8771e27562bce11ba3.jpg ALEGRIA - Câmara: unidade mantida à base de verbas e cargos no governo](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2025/02/3-dee69e5c5bbe3557ab7a1f8771e27562bce11ba3.jpg.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
As juras de harmonia na relação entre os poderes fazem parte do script, mas dependem de uma série de fatores. E, às vezes, de certas moedas de troca. Na audiência reservada, Alcolumbre reclamou com Lula da demora do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para emitir a licença ambiental que pode abrir caminho para a exploração de petróleo na foz do Amazonas, considerada estratégica para o desenvolvimento econômico do Amapá, estado do senador. Dias depois, numa entrevista a uma rádio, o presidente defendeu o projeto citado por Alcolumbre, alegando que a exploração de petróleo na chamada margem equatorial pode ser realizada sem prejudicar o meio ambiente. Outras demandas são tratadas nos bastidores. Um dos responsáveis por levar, em 2023, o Republicanos para o ministério, Hugo Motta tem participado das negociações sobre a nova reforma. Ele endossa a ofensiva destinada a garantir ao Centrão algumas pastas, como a Secretaria de Relações Institucionais, responsável pela articulação política, e a Agricultura, pensada como destino para Arthur Lira (PP-AL), ex-presidente da Câmara e principal patrocinador da sua ascensão ao comando da Casa.
Mesmo que emplaque suas demandas, Motta não garante apoio a Lula em 2026. “O presidente não chegará forte para disputar a reeleição se a economia não tiver estabilidade”, afirmou o deputado à CNN Brasil. “Os presidentes de partido, especialmente de partidos de centro, estão olhando o cenário, para onde o Brasil está indo, qual projeto político que a população vai querer em 2026”, acrescentou. A declaração externa o entendimento das agremiações de centro. Hoje, cinco delas — MDB, PP, Republicanos, União Brasil e PSD — controlam onze ministérios e têm juntas 241 deputados e 43 senadores. Essas legendas não assumirão agora compromisso com a reeleição de Lula mesmo que se tornem mais fortes no governo. A ordem é esperar até o ano que vem para ver o rumo dos ventos. “Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Em 2025, a pauta é governabilidade. Em 2026, será a eleição”, disse a VEJA Antonio Rueda, presidente do União Brasil, que chefia três ministérios. O partido já tem pré-candidato a presidente da República, o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, o que, por enquanto, não preocupa a equipe de Lula. Segundo os aliados do presidente, Caiado e outros postulantes não entrarão na disputa caso a administração federal se recupere nos próximos dois anos.
Enquanto não consegue fechar alianças formais, o governo aposta as fichas para fortalecer núcleos de apoio a Lula nos partidos de centro, especialmente naqueles que trabalharam por Jair Bolsonaro em 2022 e ainda têm alas expressivas simpáticas ao ex-presidente. Esse é um dos objetivos da reforma ministerial. A ideia é simples, mas de difícil execução, já que há muita gente interessada em virar ministro e pouca vaga disponível. Na última terça-feira, 4, a bancada do PSD na Câmara recebeu o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, para deixar claro que conta com a permanência dele no cargo, apontado como possível destino de Arthur Lira. Os deputados do PSD ainda querem trocar o desprestigiado Ministério da Pesca por uma pasta de maior peso e expertise com emendas, como o Turismo, hoje sob o comando de Celso Sabino, do União Brasil. Partido que mais conquistou prefeituras em 2024, o PSD é considerado uma prioridade por Lula. O presidente disse que não pretende substituir outro quadro da legenda, Alexandre Silveira, ministro de Minas e Energia, e declarou que seu candidato ao governo de Minas é o senador Rodrigo Pacheco, ex-presidente do Senado, também cotado para uma vaga na Esplanada.
Os sucessivos acenos de Lula ao PSD ocorrem após o mandachuva da sigla, Gilberto Kassab, afirmar que o petista não seria reeleito se a disputa fosse hoje e chamar de “fraco” o ministro da Fazenda, Fernando Haddad. A fala de Kassab repercutiu por dois motivos. Primeiro: ele é dirigente de um partido que já tem pré-candidato ao Planalto, o governador do Paraná, Ratinho Jr. Segundo: ele é secretário do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), cortejado por políticos e empresários para concorrer contra Lula em 2026. Como outros caciques do Centrão, Kassab valoriza o próprio passe e não tem pressa de decidir sobre o futuro. Essa lógica vale para o Republicanos, que tem um ministério e pode assumir outro de maior envergadura, mas não cogita aderir desde já ao projeto de reeleição de Lula. “O governo tem que ser mais pragmático, principalmente na pauta econômica”, disse a VEJA o presidente do Republicanos, deputado Marcos Pereira. “E precisa também se preocupar com o aumento do preço dos alimentos e, ao mesmo tempo, empoderar o Haddad na pauta do controle de gastos.”
Economia e inflação dos alimentos têm peso decisivo na avaliação de Lula e nas chances eleitorais do presidente, ou de um candidato escolhido por ele. Preocupado com a dificuldade de obter apoio na classe média, o governo definiu como prioridade este ano a aprovação da proposta que amplia a faixa de isenção do imposto de renda para quem ganha até 5 000 reais por mês. A regra, se votada, começará a valer a partir de 2026, ano da corrida presidencial. No caso da carestia dos alimentos, Lula e equipe contam com a queda do dólar e a supersafra agrícola brasileira como motores da redução dos preços. O valor da moeda americana caiu durante doze dias seguidos, até fechar em alta de 0,4% na quarta-feira, cotada a 5,79 reais. O fantasma da inflação acima da meta — e da picanha salgada — continua a assombrar o presidente, assim como a percepção de que sua gestão não tem rumo. Em declarações recentes, Lula admitiu que o governo ainda não entregou o que prometeu durante a campanha, mas desdenhou da avaliação de Gilberto Kassab de que seria derrotado.
Os números, por enquanto, dão força à versão do petista. Segundo pesquisa Genial/Quaest divulgada na segunda-feira 3, Lula lidera nos quatro cenários de primeiro turno, com intenções de voto que variam de 28% a 33%. Nas projeções de segundo turno, ele também venceria todos os possíveis adversários. Entre eles, o cantor Gusttavo Lima (41% a 35%) e os governadores Tarcísio de Freitas (43% a 34%), Romeu Zema (45% a 28%) e Ronaldo Caiado (45% a 26%). O problema é que também há dados negativos para o presidente. Do total de entrevistados, 49% dizem que não votariam em Lula. Os percentuais de rejeição de Tarcísio, Zema e Caiado são de, respectivamente, 32%, 23% e 21%. Além disso, pela primeira vez desde o início do atual mandato, a aprovação ao trabalho do presidente foi superada pela reprovação, num processo de desgaste de imagem que corroeu três dos principais pilares de sustentação do petista: eleitores do Nordeste, do sexo feminino e com renda de até dois salários mínimos. Com a esperada reforma ministerial, Lula quer dar um freio de arrumação na equipe, apresentar resultados ao eleitorado e impedir uma debandada de expoentes do Centrão.
O presidente conhece como poucos o grupo político que controla o Congresso. Quando tentava salvar o mandato de Dilma Rousseff, ele prometeu concessões diversas às legendas que agora corteja, que responderam com juras de fidelidade e continuaram no ministério da presidente até que, ao detectar a iminente derrocada da petista, debandaram para o lado do vice Michel Temer. Kassab foi um dos que fizeram esse movimento. Experiente, Lula sabe que anda em terreno movediço e que pode fortalecer futuros adversários, mas, diante da necessidade, não tem alternativa, senão dobrar a aposta.
Publicado em VEJA de 7 de fevereiro de 2025, edição nº 2930