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Por que o polêmico Quaquá, vitorioso em Maricá, é o exemplo do PT que dá certo

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Por que o polêmico Quaquá, vitorioso em Maricá, é o exemplo do PT que dá certo

Ludmilla de Lima

Antes mesmo de o último voto ser depositado nas urnas, o diagnóstico já estava dado: sem chances de emplacar uma única prefeitura de capital no primeiro turno, o PT sabia estar diante daqueles momentos em que era preciso cutucar fundo as raízes do fracasso. Uma resposta, porém, estava na ponta da língua, sentida na pele pelos candidatos que não conseguiram firmar vínculos com um naco do eleitorado com que sempre se deram tão bem — os estratos de renda mais baixos, uma fatia deles concentrada na ascendente porção evangélica da população. Mas, em meio à aridez, uma curiosa exceção despontou em Maricá, a 60 quilômetros do Rio de Janeiro, que há quase duas décadas vem recebendo impulso das vultosas cifras da exploração do pré-sal — tão generosas que tornam o local onde vivem 200 000 pessoas o campeão nacional de royalties.



A vitória por lá de Washington Quaquá, 53 anos, o vice-presidente nacional do PT, faz do município o recordista em gestões consecutivas em toda a história do partido — cinco ao todo. E a explicação, além da dinheirama que a profícua indústria do petróleo lhe fornece, está numa frase que o próprio Quaquá, ungido com 74% dos votos, disse a VEJA: “O caminho é fazer menos discursos de esquerda e partir para a prática”. Evidentemente que o alcaide de terceira viagem aprendeu a se promover como poucos e faz da capacidade de produzir polêmicas em série um trunfo (que tal o livro previsto para o fim do ano, Diálogos com a Utopia, em que afirma ser “de um tempo em que o PT priorizava a luta de classes, antes da pauta de comportamento, justamente o que cria laços com os mais pobres”?). Ele paga lá seu preço. Os poderosos círculos de Brasília, onde o deputado federal circula, já não lhe são tão receptivos, e voos mais ambiciosos no governo Lula não estão à mesa. “Quaquá briga com todo mundo, gosta de ostentar, e muita gente acaba não levando isso a sério. O jeito dele não ajuda”, avalia um graduado petista.

CAMINHANDO - Marcha para Jesus em Maricá: investimento deu bom retornoPrefeitura de Maricá/.

Isso posto, a cidade de Maricá tem sido lembrada pela Fundação Perseu Abramo, espécie de think tank vinculado à sigla, como um exemplo positivo em meio a um fenômeno maior e preocupante que a instituição vem apontando: o município que será novamente regido por Quaquá começou a aparecer em vídeos da instituição como um contraponto à inépcia do partido em se conectar com o público evangélico — um nó sinalizado há tempos, mas nunca desatado. “Em nossa avaliação, Maricá virou um bom case a ser ressaltado nesse sentido”, avalia Oliver Goiano, da Coordenação Nacional dos Evangélicos do PT.

Não é de hoje que Quaquá vem tentando fincar terreno entre os evangélicos, que pendem para um conjunto de valores conservadores que nunca pesou tanto na hora de votar quanto nos polarizados dias de hoje. Ainda no segundo mandato, o prefeito instituiu a Secretaria de Assuntos Religiosos, tão valiosa às lideranças das igrejas, desde sempre chefiada por algum pastor. “Ele se comprometeu com a gente e assim ganhou nosso respeito”, conta Sérgio Luis, à frente da Assembleia de Deus Ministério de Madureira de Maricá, o primeiro a comandar a secretaria. A principal missão da pasta é prover recursos para eventos como a Marcha para Jesus, que, em agosto, lotou as ruas de Maricá. Com uma rotina de cafés e almoços com pastores de variadas denominações (entre os 700 templos, predominam neopentecostais como Assembleia de Deus e Universal), Quaquá é percebido como alguém “à direita no espectro petista”, o que pega bem no nicho evangélico. “As igrejas, sobretudo as maiores, veem sua política com bons olhos porque ele não deixa que o identitarismo paute a esquerda”, explica Oliver Goiano.

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UNI-VOS - O prefeito (de camisa verde) entre lideranças religiosas: firmando elos
UNI-VOS - O prefeito (de camisa verde) entre lideranças religiosas: firmando elos./Facebook

Mas não é apenas a santa paz que reina na praiana paisagem maricaense. Onde há Quaquá, haverá polêmica — e eis que ele acalenta um sonho, muito criticado por uma ala mais progressista de pastores, de fundar sua própria igreja (lembrando que já incentiva com verbas públicas uma escola de samba e um time de futebol). O nome, já escolheu: Igreja Jesus Libertador, voltada especialmente a mulheres de periferia — e, de acordo com ele, bancada com recursos do próprio bolso. “É um projeto de base, que tem a consciência crítica como diferencial. De um Jesus que liberta, e não oprime”, explica Antonio Ferreirinha, responsável por tocar o futuro templo. Em plena campanha em 2022, a ideia foi alvejada pelo risco de dissolver a fronteira entre Estado e fé. Daí Quaquá ter pisado no freio. Uma vez eleito, voltou a toda com o projeto, apostando no crescimento da população local na casa de extraordinários 10% ao ano, o que embute a expansão evangélica. “Achar que fundar uma igreja vai criar uma aproximação com o segmento evangélico é um total desconhecimento de como ele funciona”, avalia Sérgio Dusilek, pastor batista.

Durante a campanha presidencial de 2022, Lula chegou a pedir a Quaquá que acionasse seus contatos evangélicos para promover um grande encontro com lideranças e fiéis em São Gonçalo, um populoso município vizinho a Maricá. O evento até juntou gente, mas nem de longe suavizou a fragorosa desvantagem de Lula frente ao oponente Jair Bolsonaro, que levou 69% dos votos dessa fatia no pleito. O problema persiste — 55% dos evangélicos reprovam hoje o governo, 10 pontos percentuais além da média nacional. A Fundação Perseu Abramo conta que, ciente da muralha que se avistava, lançou uma cartilha com orientações para minimizar os estragos entre esses eleitores. Na mesma toada, Lula anunciou com pompa, na terça-feira 15, a sanção de uma lei que estabelece 9 de junho como o Dia Nacional da Música Gospel. “Quero dar visibilidade ao importante papel da cultura e da fé de milhões de pessoas”, discursou o presidente no Planalto. Mas o exemplo de Maricá mostra que, para fazer mesmo a diferença, mais do que palavras de palanque, o PT precisará deixar de ser um pouco PT.

Publicado em VEJA de 18 de outubro de 2024, edição nº 2915

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Clima de vale-tudo e animosidade segue firme no se…

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Clima de vale-tudo e animosidade segue firme no se...

Valmar Hupsel Filho

A primeira rodada de debates no segundo turno de capitais importantes transformou-se num festival de acusações, num nível que chama a atenção mesmo de quem só espera o pior das campanhas brasileiras. Em João Pessoa, o ex-ministro Marcelo Queiroga (PL) tinha um minuto para se apresentar ao eleitor, mas gastou metade do tempo para fustigar o adversário, citando a operação que prendeu a mulher do prefeito Cícero Lucena (PP), por aliciamento ilegal de eleitores e suspeita de envolvimento com uma facção. A acusação de ligações com grupos criminosos, o PCC no caso, também tomou boa parte das falas de Guilherme Boulos (PSOL) em São Paulo contra seu adversário, Ricardo Nunes (MDB), que contragolpeou chamando o rival de invasor de propriedade e gente que “corre da polícia”. Em Fortaleza, Evandro Leitão (PT) explorou comentário de seu oponente, André Fernandes (PL), no vídeo em que Jair Bolsonaro ameaça a deputada Maria do Rosário (PT): “Cada compartilhamento desse vídeo aqui é um murro bem dado na boca dessa sebosa”, disse o hoje candidato a prefeito. Fernandes rebateu dizendo que violento era Leitão, que, quando era cartola do clube de futebol Ceará, invadiu o campo e agrediu um juiz. Em Curitiba, Cristina Graeml (PMB) acusou a gestão da qual o adversário, Eduardo Pimentel (PSD), é vice-prefeito de colocar livros com temática LGBTQIA+ nas escolas — e ouviu do oponente que ela é célebre por espalhar fake news sobre vacinas. Os exemplos mostram que, se no primeiro turno a campanha foi marcada por atos condenáveis de violência, com direito a soco e cadeirada ao vivo na TV, o clima agora é de guerra total, com ataques variados, inclusive pessoais, em detrimento da apresentação de propostas para gerenciar as cidades.

CONTRA-ATAQUE - Boulos: artilharia que mira o prefeito inclui acusações de ligação com corrupção e membros do PCC (Renato S. Cerqueira/Ato Press/Agência O Globo/.)

Parte da lógica se deve a uma cartilha informal que norteia os marqueteiros políticos: a de que o segundo turno é uma nova eleição. Se na etapa inicial o candidato tem de se destacar em meio aos concorrentes apresentando seu perfil, ideias e propostas, na segunda a lógica é de confronto direto ou, na linguagem do futebol, de mata-­mata. O raciocínio é fundamentado na tese de que os eleitores que se interessaram pelo perfil, ideias e propostas do candidato já votaram nele no primeiro turno, e no segundo a busca é por aqueles que votaram em branco, nulo, se abstiveram ou votaram no concorrente. Em muitos casos, o voto no segundo turno é por exclusão, no “menos pior”. Por isso, um dos principais objetivos é aumentar a rejeição do adversário, nem que seja com brigas de rua e golpes abaixo da linha da cintura. “Nessa fase é o que minha mãe dizia: tem que balançar a roseira, ou seja, derrubar as folhas e mostrar os espinhos”, afirma o marqueteiro Sidônio Palmeira.

BLECAUTE - São Paulo às escuras: drama da população virou tema de debate
BLECAUTE - São Paulo às escuras: drama da população virou tema de debate (Leandro Chemalle/Thenews2/Agência O Globo/.)

O aumento da temperatura, em grande parte, se deve ao equilíbrio das disputas. Em Fortaleza, há pesquisas que apontam um empate absoluto entre Leitão e Fernandes, com 50% dos votos válidos para cada um. Em Manaus, a diferença entre Capitão Alberto Neto (PL) e o prefeito David Almeida (Avante) está na margem de erro. Os dois aumentaram o tom das acusações mútuas. Alberto Neto diz que Almeida é um dos prefeitos com mais denúncias de corrupção na história do Amazonas, fazendo referência a casos que citam a irmã, a mulher e a sogra do adversário. Almeida rebate dizendo que o rival já foi investigado por extorsão de 5 000 reais de um motorista da Uber (veja o quadro). Também há duelos equilibrados em Belo Horizonte, Curitiba, Cuiabá, Goiânia e Natal. “Nas cidades onde a disputa está mais acirrada, a vitória representa muito mais do que a eleição do governante, mas a derrota de um campo político”, lembra Rafael Cortez, cientista político e sócio da Tendências Consultoria.

arte Vale Tudo

Outro componente é a ideologização do debate, que ficou em segundo plano no primeiro turno e volta com força na etapa decisiva. Em duas capitais, Fortaleza e Cuiabá, há um embate direto entre PT e PL, os dois maiores partidos do país e os opostos no espectro ideológico. Não à toa, Lula foi a Fortaleza no início do segundo turno, porque é questão de honra para a esquerda conquistar a capital mais populosa do Nordeste depois de um primeiro turno em que seu desempenho ficou muito aquém do esperado. Lá, o presidente da República perdeu o pudor de entrar no vale-tudo ao lembrar em discurso que o bolsonarista André Fernandes tem um vídeo célebre no qual ensina a eliminar os pelos das partes íntimas. “Única virtude é mostrar depilação”, disse Lula.

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PROVOCAÇÃO - Lula e Leitão, em Fortaleza: presidente diz que adversário do PL tem como “única virtude mostrar depilação”
PROVOCAÇÃO - Lula e Leitão, em Fortaleza: presidente diz que adversário do PL tem como “única virtude mostrar depilação” (@evandroleitao/Instagram)

Bolsonaro foi, na segunda 14, a Cuiabá, onde seu candidato, Abilio Brunini (PL), trava uma briga acirrada com o representante do PT, Lúdio Cabral. O ex-presidente também foi a Manaus e João Pessoa e, no sábado 19, sua agenda prevê em Belo Horizonte a “motociata da vitória”, em apoio a Bruno Engler, candidato do PL que briga contra o prefeito Fuad Noman, do PSD — o PT está ao lado dele na tentativa de reeleição. A volta do confronto ideológico também fez com que a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro , discreta no primeiro turno, iniciasse uma turnê com a senadora Damares Alves (Republicanos-DF) por cidades de Norte a Sul do país.

APOIOS - Bolsonaro, Zema e Brunini, em Cuiabá: união para vencer o rival PT
APOIOS - Bolsonaro, Zema e Brunini, em Cuiabá: união para vencer o rival PT (Victor Ostetti/Onzex Press e Imagens/Folhapress/.)

Não são apenas os extremos ideológicos que se engalfinham neste momento. Em algumas cidades, o duelo se tornou extremamente ácido exatamente por ter duas candidaturas à direita. Um dos principais exemplos é Curitiba, onde a chegada surpreendente de Cristina Graeml (PMB) ao segundo turno contra Eduardo Pimentel (PSD) transformou o debate numa contenda para ver quem é mais conservador ou de direita. Graeml, que chegou a ser investigada por divulgar fake news na pandemia foi alavancada por pautas como ideologia de gênero, Venezuela e descriminalização de aborto e drogas, temas que não passam nem perto da alçada de um prefeito. Pimentel tenta se contrapor apoiado no fato de também ser um candidato conservador e no seu maior estofo político — é apoiado pelo prefeito Rafael Greca e pelo governador Ratinho Jr., ambos do PSD. Mas não deixou de lembrar que o vice de Graeml, Jairo Filho, tem acusações pesadas na polícia e na Justiça sobre a prática de golpes financeiros contra investidores e empresários. Em Goiânia, há debate semelhante entre Sandro Mabel (União Brasil), apoiado pelo governador Ronaldo Caiado (União Brasil), e Fred Rodrigues (PL), aliado de Bolsonaro. A campanha entre quem é mais confiável para o eleitor conservador nessas capitais colocou Bolsonaro em lados opostos aos de Ratinho Jr. e Caiado, o que é um risco à união da direita em 2026, já que os dois governadores sonham em ser uma alternativa desse espectro ideológico ao Palácio do Planalto.

FOGO CRUZADO - Pimentel e Greca, em Curitiba: candidato do PSD diz que adversária é conhecida por fake news
FOGO CRUZADO - Pimentel e Greca, em Curitiba: candidato do PSD diz que adversária é conhecida por fake news (@eduardopimentel/Instagram)

Outro ponto que contribui para a agressividade das campanhas é a influência cada vez maior das redes sociais. Candidatos mais jovens e que fizeram fama na internet, como o ex-coach Pablo Marçal (PRTB), que chegou em terceiro na eleição em São Paulo, usam a lógica dos “cortes” no Instagram, com vídeos curtos de declarações polêmicas ou ofensas aos adversários, com o objetivo de viralizar. André Fernandes, por exemplo, tem 26 anos e tornou-se conhecido por vídeos no YouTube contra o PT e Dilma Rousseff. “Os candidatos youtubers sempre tiveram discursos mais agressivos, fazendo o algoritmo caminhar de forma que aumente o número de seguidores. Isso serve para Belo Horizonte e Fortaleza. Eles vieram do confronto, surgiram no processo de radicalização e não sabem fazer política de outra forma”, avalia Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva. A influência das redes sociais também contamina a campanha em outras plataformas, como o rádio. Boulos, por exemplo, martelou durante dias uma repetição da frase “Digite no Google: Ricardo Nunes, chefe de gabinete, PCC”, tentando levar o ouvinte a buscar notícias sobre um integrante do governo municipal que teria ligação com o chefe da facção, Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola — Nunes já respondeu que é um servidor de carreira, que está há anos na burocracia da máquina paulistana e não foi indicado por ele. No debate da Band, em meio à postura incisiva de Boulos, Nunes chegou a abraçá-lo e avisá-lo: “Você não vai me intimidar”.

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Na história recente, alguns episódios ocorridos na reta final das eleições entraram para a antologia das baixarias. Na disputa pela prefeitura do Rio em 2020, Marcelo Crivella afirmou que a vitória de Eduardo Paes resultaria em pedofilia nas escolas. O ataque vil e absurdo não impediu a vitória dele (Paes, aliás, foi reeleito neste ano). No mesmo ano, em Recife, a coligação de João Campos (PSB) foi proibida pela Justiça Eleitoral de distribuir panfletos dizendo que sua rival, a prima Marília Arraes, defendia a legalização das drogas, o aborto e a ideologia de gênero. Dizia ainda que ela era do PT, “que persegue os cristãos em todo o Brasil”. Dentro da tradição política nacional de passar um pano para as pendengas do passado em nome dos interesses do presente, agora Campos foi reeleito com apoio do PT e discurso alinhado a Lula.

ENROLADO - Cristina Graeml e Jairo Filho: vice é acusado de golpes financeiros
ENROLADO - Cristina Graeml e Jairo Filho: vice é acusado de golpes financeiros (@cristinagraeml/Instagram)

Ainda que golpes abaixo da linha da cintura não sejam exatamente uma novidade, o nível mostrado neste início de segundo turno preocupa, pois os ataques mútuos tomam o espaço do debate de questões relevantes a ser enfrentadas nas cidades. Nos últimos dias, a população de São Paulo foi mais uma vez exposta à degradante situação de ficar dias sem energia elétrica por causa de mais um apagão (leia a reportagem na pág. 48). No início do ano, os gaúchos viveram um drama de proporções inéditas, com pessoas ilhadas e desabrigadas, casas e empresas destruídas e infraestrutura arruinada por causa de enchentes. Há poucas semanas, o país ficou encoberto pela fumaça das queimadas, um espetáculo não só triste, mas de grande impacto na saúde e na rotina das pessoas. Nesse contexto, é de se lamentar que o segundo turno tenha enveredado pela tentativa da desqualificação alheia e do rebaixamento do confronto. O debate em curso está muito aquém do que demanda a sociedade.



Publicado em VEJA de 18 de outubro de 2024, edição nº 2915



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A sombra de Bovary | VEJA

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A sombra de Bovary | VEJA

Arthur Pirino

Umas das mais enraizadas crenças de nossa época é a de que tudo vai sempre melhorando. É crença bem fundamentada. A mortalidade infantil caiu 51%, apenas desde o ano 2000, e a expectativa de vida foi de 52 anos, em 1960, para 74 anos, por agora. No Japão, já está batendo em 85 anos, e leio que talvez tenhamos chegado perto de um limite. O fato é que tudo parece indo muito bem. Mas há uma névoa: por alguma razão, os índices de felicidade vêm declinando. É o que diz o World Happiness Report, relatório conduzido pela Universidade de Oxford em 140 países. O estudo dá conta de uma “queda substancial da felicidade entre os mais jovens, em especial na Europa e na América do Norte”.

Muita gente associa isso a eventos como o aquecimento global, ao “preconceito” ou à desigualdade. Bobagem. O mundo não foi substancialmente melhor em algum lugar do passado. A explicação me parece outra, e me foi dada pela doutora Ana Lembke, autora de Nação Dopamina, com quem conversei por estes dias. “É a sobrecarga”, diz ela. Seu conceito mais fascinante é o do “paradoxo da abundância”. Algo na linha: temos acesso fácil a quase tudo. É ótimo, mas facilmente perdemos o controle. “Nosso cérebro evoluiu para lidar com a escassez”, diz Lembke, “não com a abundância”. Para quem acha que isso não é um problema, sugiro a leitura de Jonathan Haidt e seu A Geração Ansiosa. A mesmíssima coisa está acontecendo com nossos adolescentes, apenas com muito mais gravidade. São quarenta horas por semana de dopamina barata, via telas e smartphones. É um tipo de epidemia. Da qual, sejamos francos, ninguém está perfeitamente livre.

Ninguém sabe bem o que é a felicidade. A melhor frase que escutei sobre o assunto veio do Contardo Calligaris: “Não quero ser feliz, quero uma vida interessante”. O que entendi foi o seguinte: não é que o Contardo não queria ser feliz. Ele apenas não acordava todos os dias pensando nisso. Pensava em fazer as coisas bem-feitas, ser um bom psicanalista, inventar atividades desafiadoras. E aceitar que a vida tem sua dose de sofrimento, com a qual temos muito a aprender. Felicidade vinha como uma bênção, depois de tudo. Ótimo. Meu ponto é observar como já lidamos com ideias muito diferentes do que seja uma vida interessante. O século XIX cultivou o fascínio pela vida heroica. A vida intensa e eventualmente curta. Quem sabe à imagem de Napoleão. Stendhal fez um retrato quase perfeito dessa ideia, com Julien Sorel, seu herói em O Vermelho e o Negro. O tipo que veio de baixo, que apanhava do pai, e sonhava com a glória, no Exército ou na Igreja.

“Agradeça se a vida o brindar com algo que você chame de felicidade”

No século XX o herói foi saindo de cena, e devagar entrou no palco a civilização do bem-estar. O mundo do “homem-massa”, descrito por Ortega y Gasset. O tipo que se diverte, circula pelas grandes feiras em Paris e acha que o mundo nasceu meio pronto. Na literatura, lembro de Philip Carey, o bom sujeito, personagem de W. Somerset Maugham em Servidão Humana. O tipo que tenta de tudo, que vai aos extremos da paixão, desce ao quinto dos infernos, e opta pelo longo caminho. O bom casamento, a profissão honesta, e um certo desencantamento, dado pela ideia de uma vida longa e agradável. Tudo que teria horrorizado a um Lord Byron. Ou a um Oscar Wilde, a quintessência de um mundo que ia ficando para trás. O que estamos vivendo são as dores de crescimento da sociedade do bem-estar. É isso o paradoxo da abundância. A tecnologia avança, a sharing economy avança, a China vende cada vez mais carros elétricos e bugigangas, há mais canais para assistir a qualquer coisa. Tudo ótimo, mas há um custo. Na verdade, há uma curva. Por muito tempo, alimentamos a ideia de que dispor de mais liberdade e alternativas levaria a um contínuo ganho de bem-estar. E, logo, mais felicidade. É verdade, em muitos casos. Se você vive em uma região isolada e a melhor opção de lazer é assistir a algum programa na TV aberta, é possível imaginar que ganhará se em um passe de mágica for levado para a Broadway, em Nova York. O ponto é que logo ali surge o paradoxo. Há um custo para as escolhas. Há uma sensação de perda com o não escolhido. E o sentimento (em regra, ilusório) de que as opções feitas pelos demais eram melhores do que as nossas.

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Daniel Kahneman e Angus Deaton mostraram em uma pesquisa como mesmo o dinheiro atende a essa lógica. Mais dinheiro de fato traz felicidade. Mas só até certo ponto. A partir de uma renda anual perto de 75 000 dólares, não haveria mais ganhos relevantes de bem-estar. Vale também para quem tem pouco. E é disso que trata nosso drama recente com as apostas esportivas. Torrar alguns trocados nas bets é apenas mais uma opção de diversão barata. E não passa de ilusão imaginar que nosso bom leviatã vai controlar tudo que as pessoas fazem com o seu dinheiro. Quando leio sobre essas coisas, lembro de Madame Bovary. Muita tinta já se gastou para identificar a personagem de Flaubert como histérica, como uma mulher oprimida e mesmo como uma “indecente”, pelo que o próprio Flaubert foi processado. De minha parte, gosto de ver Bovary como alguém que em algum momento perdeu a corrida com sua própria imaginação. O mundo dos romances e suas infinitas possibilidades, de um lado, e a vida de verdade, com suas misérias, de outro. E, a partir daí, a perda do controle. A fábula de Flaubert é uma antecipação. Quando penso nas taxas de suicídio, que cresceram muito nos anos recentes, em especial entre adolescentes, a ideia surge com força. Há uma sombra de Madame Bovary em nossa cultura do excesso.

Não há solução coletiva para tudo isso. O governo pode limitar apostas nas bets, mas isso não é nada. E podemos ficar por aí resmungando que é preciso “regular as redes”, mas isso também não significa coisa nenhuma. O excesso não é feito de crime, mas de sedução. Nisso reside nosso problema. Ninguém produzirá uma boa vida se não for capaz de criar restrições, por conta própria, à lógica da abundância. Se não descobrir o exato ponto da curva em que tudo que é imensamente positivo entra no vermelho e leva a um caminho sem volta. Há muita literatura sobre como retomar o controle. Limitar nossos campos de interesse, evitar o devaneio da comparação com os outros. E, muito especialmente, cultivar a vida off-line. E quem sabe lembrar de uma antiga lição de Voltaire, no final de Cândido. Aquela cena do velho turco dizendo para a trupe cansada que não há problema em desejar muitas coisas e saber o que se passa em Constantinopla. Mas que é preciso “cultivar o próprio jardim”. No fundo, é a lição do Contardo. Tratar de viver uma vida interessante, com dores e limites bem estabelecidos. E, se em algum momento a vida o brindar com alguma coisa que você puder chamar de felicidade, agradeça. Faça um discreto brinde, com a leveza de um fim de tarde. E agradeça.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Publicado em VEJA de 18 de outubro de 2024, edição nº 2915





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Vladimir Putin: Frase do dia

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Vladimir Putin: Frase do dia

Matheus Leitão

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“Nós entendemos o que está acontecendo na Rússia. E eu entendo que tenho relações excelentes e amigáveis ​​com o presidente Lula. Bem, irei lá de propósito para atrapalhar o trabalho normal desse fórum?” (Vladimir Putin, presidente da Rússia, dizendo que não participará da reunião do G20 no Brasil, em novembro, após a ordem de detenção contra ele expedida pelo Tribunal Penal Internacional por crimes de Guerra no conflito com a Ucrânia)

 





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