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Professor Dr Eduardo Carneiro publica artigo sobre a mudança da bandeira do Acre

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SOBRE A MUDANÇA DA BANDEIRA DO ACRE

           Surpreendeu-me a noticia de que está em tramitação na Assembleia Legislativa um Projeto de Lei que muda a bandeira do Estado do Acre. Não tive acesso ao referido projeto, no entanto, por dedução, dá para imaginar que a justificativa de tal mudança está baseada em um raciocínio silogista, no mínimo, equivocado, a saber: Premissa 1: a bandeira do Estado Independente do Acre proclamado por Luís Galvez é diferente da atual. Premissa 2: o Estado Independente de Galvez é a origem do Acre Estado. Premissa 3 (conclusão por Inferência):  a bandeira atual não é a original, portanto, deve ser mudada.

            A primeira premissa está correta. Realmente a bandeira adotada pelo Estado Independente do Acre proclamado por Luís Galvez em 1899 e  por Plácido de Castro em 1903 era outra distinta da atual. Digo “outra”, porque quando se trata de um pavilhão cívico (nacional, estadual e municipal), qualquer alteração, mesmo que mínima, já a descaracteriza, uma vez que suas especificações em detalhes são reguladas por decretos. Portanto, alterar as proporções, as posições, as cores, acrescentar ou suprimir detalhes, etc., é o mesmo que produzir outra bandeira. E como não se pode ter duas bandeiras representando um mesmo ente político, a segunda é qualificada como  “desrespeito cívico”. Então, a bandeira do Acre atual e a bandeira do Acre “de Galvez” não são simplesmente iguais com alguns detalhes diferentes, pelo contrário, são duas bandeiras, cada um representando entes políticos distintos. De acordo com a vexilologia, o projeto de criação de uma bandeira pode levar em consideração a verossimilhança com outras bandeiras já existentes, caso aja entre as comunidades algum lastro histórico comum. É bom lembrar que caracteres verossimilhantes não são caracteres idênticos, já que não se pode adotar uma mesma bandeira para entes políticos diferentes. Um Estado não pode adotar a bandeira de um país. Um município não pode adotar a bandeira de um Estado e assim por diante. É exatamente isso que acontece nessa questão, apesar de mesmo nome, o Acre “de Galvez” é um país estrangeiro ao Brasil, e o Acre Atual é um Estado brasileiro. Bastaria isso para que o “silogismo wilsoniano” caia por terra.

            Então, para esse projeto que tramita na Assembleia Legislativa ganhe um mínimo de coerência seria preciso que primeiro provasse que a República de 1899 é igual ao Estado de 1962. Caso consiga essa missão impossível, estaria facultada a adoção de uma mesma bandeira. Seria o Acre de 1962 IGUAL ao Acre de 1899? Certamente que não. Mas ambos têm o mesmo nome. Sim, são homônimos, e talvez essa seja uma das poucas coisas em comum entre eles. Ter nomes iguais não tornam iguais esses dois topônimos. Para início de conversa, cada Acre têm um respectivo decreto de criação, ou seja, uma certidão jurídica de nascimento própria. Geograficamente são distintos, uma vez que o limite oeste do “Acre país” ia até o rio Iaco, excluindo os afluentes do Juruá. O espaço jurisdicional de um era bem menor que o do outro. A natureza política deles também são divergentes, um era país e outro estado. São pessoas jurídicas de direito público com naturezas opostas. O Acre Estado é brasileiro, o Acre País era de nacionalidade estrangeira. O Acre País era independente do Brasil, já o Acre Estado é dependente. O Acre “de Luiz Galvez” era um Estado soberano que adotara a forma republicana de governo. A república pressupõe o exercício da cidadania que, por sua vez, supõe um vínculo jurídico entre o indivíduo e o Estado Nacional, que nada tem a ver com o Acre Estado.

               O Acre Estado não é a continuação do Acre país. Isso seria uma “involução”, um movimento regressivo contrário a ideia de progresso tão basilar no ponto de vista da historiografia positivista, típica do século XIX. A história oficial do Acre foi construída aos moldes positivistas, por isso é que temos a impressão de que trata-se de uma narrativa linear e cronológica do idêntico em pleno desenvolvimento, ou seja, como se fosse um único Acre em estágios de evolução diferentes. Atualmente, nenhum curso de história de prestígio internacional adota o estilo narratológico positivista como padrão, justamente por causa desse caráter teleológica manipulador. A bandeira é a marca identitária de uma ente político republicano, portanto, se há dois entes, que se tenha duas bandeiras.

             Mesmo que o Acre País fosse hipoteticamente tido como o passado fundador do Acre Estado, a necessidade de diferenciá-los simbolicamente com bandeiras próprias continuaria sendo pertinente, afinal, o primeiro Acre tinha nacionalidade estrangeira. Porém, os historiadores positivistas e conservadores dirão: mas o “sangue da República de Galvez corre nas veias do Estado do Acre”. Eu responderia: mesmo que essa “fantasia historiográfica” fosse verdadeira, não implicaria dizer que se trata de um mesmo Acre, pois ser “descendente sanguíneo” não torna as “digitais” individualizadoras iguais. Justamente por causa da singularidade é que há a necessidade de símbolo civis também singular. 

            Diante de tudo que foi dito, a caracterização exata da bandeira do Estado Independente do Acre se torna secundária, se ela tinha a estrela na parte superior ou inferior, isso tanto faz, apesar de que as evidências históricas apontam para que ela estivesse na parte superior. A bandeira do Acre “de Galvez” foi tomada como modelo em 1920 para que OUTRA fosse inventada a partir de sua verossimilhança, invertendo a linha diagonal das cores e, por fim, sendo aceita oficialmente via decreto pelo governador do então Território do Acre Epaminondas Jacome. Qual o motivo da mudança? Sinceramente não sei, somente uma pesquisa apurada poderia nos dizer. Resgatar o projeto que idealizou a bandeira do Acre unificado, as discussões que houveram em torno dele, se houve contrapropostas ou projetos alternativos, tudo isso precisaria ser pesquisado.

           Para concluir, o projeto em tramitação diz que a bandeira atual do Acre está “ERRADA”, porém eu digo que a ideia de erro só tem validade a partir de um “padrão” socialmente aceito como certo, fora disso, as ideias de certo e errado viram “fumaça”. Então, o “padrão” aceito seria a bandeira do Acre País? Por quais motivos esse padrão deveria ser aceito? É bom que se diga que, nesse caso, não se trataria de “corrigir um erro” e sim de adotar uma OUTRA bandeira, qual seja, aquela que representava um Acre estrangeiro ao Brasil. O “erro histórico winsoniano” não precisa ser corrigido, pois a atual bandeira não está “de cabeça para baixo”, ela está exatamente onde deveria estar. Repito em dizer, não estamos tratando de uma mesma bandeira, sendo uma certa e a outra errada, o caso aqui é que temos duas TOTALEMENTE singulares, uma representando um país e a outra representando uma unidade federativa de um país. Não se trata de “resgatar a história do Acre” com uma suposta correção da bandeira e sim consolidar, por meio de um símbolo civil, o mito fundador do Acre, ou seja, o abuso da história.

Dr. Eduardo de Araújo Carneiro é professor da UFAC, lotado no Centro de Filosofia e Ciências Humanas. É escritor e editor de livros.

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Artigo: Identidade replicada

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Foto de capa [Everton Vila]
Você já se perguntou o que realmente significa ser “você”? Não no sentido banal de identidade civil ou preferências pessoais, mas na essência da existência. Essa pergunta, que parece abstrata e até desnecessária no dia a dia, se torna um abismo quando confrontada com avanços tecnológicos e reflexões filosóficas mais profundas. Afinal, o que acontece se, em um piscar de olhos, sua mente for copiada, seus pensamentos transferidos e sua existência replicada em outra parte do universo? Ainda assim, você continuaria sendo “você”?
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O fascínio pelo tema da identidade pessoal sempre esteve presente na filosofia e na ciência, mas os tempos atuais impõem novas angústias. Imagine que sua mente possa ser digitalizada e inserida em uma máquina. O que diferenciaria essa versão de você do seu corpo biológico? Se sua consciência for recriada, sua essência foi preservada ou apenas simulada? As respostas não são simples, porque tocamos em algo que ainda não compreendemos totalmente: a própria natureza da consciência.
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A biologia nos ensinou que nossos corpos mudam radicalmente ao longo dos anos. Quase nenhuma célula que compõe seu corpo hoje estava presente há uma década. No entanto, você continua “sendo” você. Se o corpo pode mudar e a identidade persiste, talvez seja a organização das memórias, das experiências e das conexões neurais que nos definam. Mas então surge outra questão: se essa organização puder ser fielmente replicada, qual das versões será a autêntica? Será que a noção de autenticidade faz sentido nesse contexto?
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Se a identidade pessoal não está rigidamente ancorada no corpo, mas sim em uma estrutura de informações e interações, então aquilo que chamamos de “eu” pode não passar de uma ilusão funcional. Um efeito emergente de processos biológicos, elétricos e químicos. Isso nos leva a um paradoxo inquietante: se você pudesse ser dividido em duas consciências idênticas, ambas acreditando ser o original, qual delas seria “real”? Ou será que a continuidade da identidade é apenas uma ilusão que aceitamos para não cairmos na vertigem da dúvida?
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Agora, imagine um teletransporte que funcione não movendo seu corpo, mas destruindo-o em um lugar e recriando uma cópia exata em outro. O novo “você” acorda do outro lado com todas as suas memórias intactas, convicto de que nada mudou. Mas será que o original ainda existe ou foi apenas apagado para sempre? O desconforto dessa ideia nos força a refletir sobre se a identidade é um processo contínuo ou uma mera sequência de estados de consciência.
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Mesmo dentro de um único corpo, já somos múltiplos. Memórias mudam, percepções oscilam, opiniões se transformam. Há uma continuidade psicológica, mas nunca uma identidade fixa. Talvez insistamos em buscar uma resposta definitiva para a questão do “eu” porque tememos admitir que, no fundo, somos apenas processos em fluxo, narrativas em constante reescrita.
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Mas se aceitarmos essa perspectiva, não há apenas desespero. Pelo contrário, há libertação. Se somos processos, então podemos evoluir. Se somos histórias, podemos reescrevê-las. Se nossa identidade é fluida, então o medo da mudança e da perda do “eu” se dissolve. A grande questão não é preservar quem somos, mas quem estamos nos tornando. E talvez, no fim das contas, essa seja a única verdade que importe.
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Maurício Pinheiro – Educador de Tecnologias e Artes no Sesc SP, Analista de Software, Produtor Cultural e Roteirista.
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Foto de capa Everton Vila.

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Artigo: A obsolescência da infância

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Foto de capa [internet]
A capacidade de transformar a experiência humana em camadas de significado é talvez o maior testemunho do que nos distingue como seres pensantes. No entanto, o que acontece quando essas camadas começam a se dissipar? A distinção entre os papéis de adultos e crianças – antes tão clara, quase sagrada – está sendo progressivamente erodida, levando-nos a questionar não apenas como nos definimos, mas também como preparamos o futuro.
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Durante séculos, a infância foi tratada como uma invenção cultural, um espaço de proteção e formação que demarcava um limiar entre a simplicidade de aprender a vida e a complexidade de vivê-la. Porém, avanços tecnológicos não só eliminaram barreiras de comunicação, mas também expuseram o que antes era considerado um segredo exclusivo do mundo adulto. A informação, que outrora demandava tempo e preparo para ser assimilada, hoje é servida em tempo real, frequentemente sem filtros ou contexto. É inevitável refletir: quais são as implicações de uma sociedade onde as “respostas” estão ao alcance de um toque, mas as “perguntas” perdem profundidade?
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Considere, por exemplo, como os meios eletrônicos transformaram o conceito de responsabilidade. Uma criança que, há um século, mal poderia sonhar com o universo além de sua aldeia, agora tem acesso instantâneo a imagens e ideais que redefinem o que significa “ser” em uma escala global. No entanto, essa ampliação de perspectiva não vem acompanhada de maturidade instantânea. O tempo – aquele aliado invisível na formação de um senso de mundo – é encurtado. E, ao fazê-lo, remove-se também a possibilidade de construir relações significativas entre experiência, erro e aprendizado.
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Por outro lado, o desaparecimento gradual de jogos infantis e o declínio de interações sociais orgânicas entre crianças sugerem um fenômeno curioso. Onde está o espaço para a criação espontânea? As brincadeiras supervisionadas por adultos – planejadas, regulamentadas e direcionadas para resultados – substituíram o simples prazer de brincar. A liberdade de experimentar e falhar, essencial para o desenvolvimento, tornou-se algo tão raro quanto uma partida de “esconde-esconde” em tempos modernos.
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A essência da infância parece estar em extinção não apenas por mudanças culturais, mas pela nossa obsessão com eficiência. Crianças são, muitas vezes, vistas como projetos de adultos, onde cada momento deve ser estruturado para maximizar habilidades futuras. Contudo, quem está ensinando o valor de simplesmente “ser”? Ao eliminar a distinção entre os mundos infantil e adulto, criamos uma geração que não é nem uma coisa nem outra. Eles carregam o peso das expectativas de um mundo que se move rapidamente, mas carecem do tempo e espaço para descobrir quem realmente são.
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Esse cenário levanta questões importantes sobre educação. Se o ato de aprender era, no passado, um privilégio que separava adultos de crianças, agora ele se dilui em uma infinidade de fontes dispersas. O desafio não é apenas transmitir conhecimento, mas criar contextos em que esse conhecimento tenha relevância. Nossas escolas estão preparadas para isso? Estamos, como sociedade, dispostos a desacelerar o ritmo para permitir que nossas crianças realmente “cresçam”?
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Há algo de profundamente irônico no fato de que, quanto mais nos conectamos digitalmente, mais perdemos de vista a necessidade de preservar o tangível. Uma infância que desaparece não é apenas uma questão de nostalgia. Ela representa uma ruptura fundamental em como transmitimos valores, curiosidade e empatia. E, embora o futuro ainda esteja em aberto, é nossa responsabilidade coletiva decidir o que queremos que ele contenha.
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O tempo para refletir não pode ser substituído pela pressa da inovação. O resgate da infância, com sua inocência e capacidade de explorar o mundo sem filtros excessivos, é uma tarefa que exige paciência e intenção. Somente assim poderemos garantir que o “vir a ser” de uma criança não seja comprometido pelo ritmo implacável de um mundo que se esqueceu de desacelerar.
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Maurício Pinheiro – Educador de Tecnologias e Artes no Sesc SP, Analista de Software, Produtor Cultural e Roteirista.

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Artigo: Laços virtuais, vazios reais

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Foto de capa [internet- Gianfranco Grenar]
Certa vez, disseram que a verdadeira solidão não é a falta de companhia, mas o isolamento disfarçado de presença. Vivemos tempos em que a tecnologia promete mais conexões, mas entrega vínculos que deslizam pela superfície de nossas vidas, sem nunca mergulhar em profundidade. Estar conectado deixou de ser um ato consciente; tornou-se um estado permanente, quase reflexo. Mas até que ponto a ilusão de proximidade digital nos afasta do que realmente importa?
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Hoje, assistimos à ascensão de dispositivos que não apenas atendem às nossas demandas, mas também fingem compreender nossas dores. Robôs que se apresentam como amigos, companheiros ou mesmo confidentes. A promessa é sedutora: relacionamentos sem as imprevisibilidades e desafios que marcam os encontros humanos. Sem rejeição, sem discussões, sem o desconforto de se colocar no lugar do outro. Mas também sem a riqueza das imperfeições que nos tornam, de fato, humanos.
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É tentador imaginar um mundo onde o afeto seja programado e as interações, controladas. Muitos jovens já preferem uma mensagem de texto a uma conversa presencial. Não porque não desejem conexão, mas porque temem a vulnerabilidade que ela exige. Uma mensagem é segura; uma conversa é arriscada. Estamos criando uma geração que sabe comunicar-se rapidamente, mas não profundamente. E, nesse processo, ensinamos a nós mesmos que é aceitável reduzir a complexidade das relações humanas à simplicidade de uma interface.
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Porém, o que perdemos ao abraçar essa ideia? A autenticidade das relações humanas reside precisamente em sua imprevisibilidade. Amar é lidar com nuances, aprender a negociar expectativas, encarar desentendimentos e, acima de tudo, crescer junto ao outro. É abraçar a incerteza sabendo que é nela que residem os momentos mais significativos. Quando trocamos pessoas por máquinas que simulam cuidado e afeto, não apenas reduzimos a profundidade de nossas experiências; redimensionamos também nossas expectativas de relações reais.
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Mais alarmante é que esses substitutos tecnológicos não são apenas aceitos, mas celebrados. Em lares de idosos, robôs em forma de animais de estimação confortam os residentes, prometendo companhia sem exigir reciprocidade. Em salas de estar, assistentes virtuais se tornam os ouvintes mais presentes, sempre prontos a responder sem julgamento ou cansaço. Para muitos, esses avanços soam como soluções. Mas seria mesmo uma solução entregar nossas vulnerabilidades às máquinas? Ou estamos apenas mascarando a nossa incapacidade de lidar com as complexidades humanas?
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Na pressa de evitar a dor, esquecemos que é dela que brotam os aprendizados mais profundos. A convivência humana é feita de desconfortos e reconciliações, de atravessar juntos momentos de crise. Um robô pode nos oferecer uma simulação de conforto, mas nunca o abraço de quem compartilha nossa experiência de mundo. Nossos dispositivos podem nos manter ocupados, mas não preenchidos. E talvez seja justamente essa a distinção que precisamos resgatar: estar ocupado não é o mesmo que estar conectado. Estar conectado não é o mesmo que pertencer.
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No entanto, não é o abandono da tecnologia que nos levará a melhores caminhos, mas a maneira como a integramos à nossa busca por significado. Precisamos criar ferramentas que ampliem nossas possibilidades humanas, não que as limitem. A verdadeira revolução está em como escolhemos usar essas inovações para construir relações mais autênticas, significativas e desafiadoras. Pois não são as máquinas que nos definem, mas os laços que construímos com quem realmente pode olhar nos nossos olhos e compartilhar, em profundidade, aquilo que nos torna humanos.
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Maurício Pinheiro – Educador de Tecnologias e Artes no Sesc SP, Analista de Software, Produtor Cultural e Roteirista.

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