Abdi Latif Dahir
Estudante universitária é assassinada e seu corpo jogado em um campo. Corredora olímpica de longa distância morre após ser gravemente queimada em um ataque com gasolina. Mãe, filha e sobrinha são torturadas e mortas, seus corpos mutilados são descartados em locais diferentes.
Uma série de assassinatos brutais no Quênia nos últimos meses, documentada pela polícia e por grupos de direitos humanos, chocou uma nação onde a raiva pela violência contra mulheres e meninas tem provocado protestos em todo o país. Os apelos estão se intensificando para que as autoridades façam mais para deter os assassinatos.
A polícia afirma que 97 mulheres foram assassinadas de agosto a outubro deste ano, um número impressionante mesmo no Quênia, onde o feminicídio há muito tempo é endêmico. Em julho, sacos contendo partes do corpo de mulheres que, acredita-se, foram mortas por um assassino em série foram descobertos em um lixão na capital, Nairóbi.
Nesta terça-feira (10), milhares de manifestantes foram às ruas de Nairóbi, exigindo que o governo tome medidas para deter os assassinatos. Protestos menores também ocorreram em outras cidades e vilas em todo o país, disseram grupos de direitos humanos.
Em Nairóbi, a polícia lançou gás lacrimogêneo contra os manifestantes que gritavam “parem de matar mulheres” e “mulheres também têm direitos”. Pelo menos três ativistas, incluindo o diretor executivo da Anistia Internacional Quênia, foram detidos, de acordo com um comunicado de vários grupos de direitos.
Lá Fora
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A onda de raiva refletiu a impotência sentida por muitas mulheres no Quênia e o desejo de justiça para aquelas que foram mortas. “Os mortos não podem falar. Então, quem vai contar a verdade e defendê-los?” disse Lucy Njeri Mwaniki. Sua filha única, Seth Nyakio, 23, foi estuprada e estrangulada até a morte em outubro em um apartamento em Thika, uma cidade a cerca de 40 quilômetros a nordeste de Nairóbi. O ex-namorado de uma de suas amigas está sendo procurado pela polícia como principal suspeito.
O aumento nos assassinatos no Quênia está ligado às disparidades econômicas e às atitudes patriarcais profundamente enraizadas que negam autonomia às mulheres, de acordo com pesquisadores. Nas redes sociais, as vítimas muitas vezes foram culpadas pela roupa que vestiam ou por seus estilos de vida. Mas os feminicídios no Quênia refletem um problema mais amplo em toda a África.
Mais de 21 mil assassinatos relacionados ao gênero de mulheres foram documentados no continente africano em 2023, a maior taxa do mundo, de acordo com um relatório das Nações Unidas em novembro. Observadores dizem que os números reais são muito maiores. O feminicídio geralmente é cometido por membros da família ou parceiros íntimos do sexo masculino, dizem os especialistas, e muitas vítimas também são submetidas a abusos físicos, sexuais e psicológicos.
Após meses de críticas contundentes, o presidente do Quênia, William Ruto, reconheceu no mês passado que o feminicídio era “um problema urgente e profundamente preocupante”. Sua administração, ele disse, alocaria cerca de US$ 770 mil (R$ 4,6 milhões) para uma campanha destinada a proteger e apoiar as vítimas —uma quantia que os ativistas disseram ser muito aquém do necessário.
Grupos de direitos humanos pediram a Ruto que declarasse o feminicídio uma crise nacional e destinasse mais dinheiro para conscientizar sobre o problema. Eles também querem que o Parlamento, onde a coalizão de Ruto detém a maioria, promulgue uma lei que crie uma categoria especial de crime para abranger os assassinatos motivados por gênero, impondo penas severas aos perpetradores.
Ativistas e as famílias das vítimas também dizem que a polícia não investiga a fundo casos de feminicídio. Por exemplo, o suspeito que foi preso e acusado de assassinar e jogar as mulheres no lixão de Nairóbi mais tarde escapou da custódia. Segundo a polícia, os policiais podem tê-lo ajudado a escapar.
“Perdemos tantas mulheres, e mesmo assim o feminicídio não é levado a sério”, disse Caroline Chege, cuja filha de 20 anos, Ivy Wairimu Chege, morreu em março após cair do sexto andar de um prédio em Juja, uma cidade a cerca de 30km a leste da capital. Ela disse acreditar que sua filha foi assassinada, citando imagens de vídeo que mostravam ela discutindo com um grupo de homens e uma mulher antes de sua queda. Ninguém foi preso no caso, disse ela. “Cada dia parece o fim do mundo.”
Alberta Wambua, diretora executiva do Centro de Recuperação de Violência de Gênero, uma organização sem fins lucrativos que tem uma unidade no Hospital de Mulheres de Nairóbi, disse que todos os meses suas instalações em todo o Quênia tratam centenas de mulheres e meninas que sofreram várias formas de violência de gênero, incluindo espancamentos e estupros.
Para quebrar o ciclo de violência, Alberta disse que sua organização estava trabalhando com famílias, estudantes e universitários para promover a igualdade de gênero e o respeito pelas mulheres. Também estava treinando a polícia sobre como coletar evidências e capturar os perpetradores, acrescentou. “Nós normalizamos a violência a ponto de ficarmos insensíveis”, disse ela. “Agora precisamos ensinar o amor.”
Lucy Mwaniki, mãe de Seth Nyakio, citada acima, disse que nunca imaginou que algo aconteceria com sua filha, uma recém-formada na faculdade que administrava um pequeno negócio de suprimentos. Elas eram “melhores amigas”, disse ela, e faziam tudo juntas.
Em meados de outubro, Seth foi passar a noite na casa de uma amiga. Quando ela não voltou no dia seguinte, não respondeu às mensagens nem atendeu as ligações, Lucy ficou alarmada.
A polícia mais tarde encontrou o corpo de Seth no apartamento da amiga. Lucy acusou a polícia de agir lentamente no caso, afirmando que foi somente quando sua família usou suas conexões políticas que os policiais finalmente procuraram suspeitos e colheram depoimentos.
Ela disse que as roupas de sua filha não foram preservadas como evidência e que as encontrou desacompanhadas e molhadas na delegacia.
Um porta-voz da polícia do Quênia não respondeu aos pedidos de comentário.
Lucy disse que olhava fixamente para homens na rua, imaginando se um deles era o assassino de sua filha. Ela frequentemente assistia a vídeos gravados com ela, disse, sentindo sua falta. “Tenho tantas perguntas”, afirmou. “Viverei com essa agonia, dor e trauma para o resto da vida.”
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