Laryssa Borges
Nunca houve consenso entre os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a decisão de concentrar no gabinete de Alexandre Moraes as múltiplas investigações que envolvem Jair Bolsonaro. Em 2019, ele foi escolhido como relator do inquérito que apurava a disseminação de notícias falsas. Depois disso, acumulou também as investigações sobre a falsificação do cartão de vacinas, o caso das joias, os ataques do 8 de Janeiro e, finalmente, a suposta tentativa de golpe de Estado. A justificativa para agrupar todos esses casos com o ministro é de que eles seriam correlatos. O ex-presidente teria estimulado a difusão de fake news, adulterado seu histórico de vacinação, vendido presentes que recebeu quando estava no cargo e incentivado a invasão e depredação de prédios públicos com o objetivo de desmoralizar as instituições, subverter a democracia e se manter no poder. Segundo um dos mais experientes integrantes da Corte, a concentração dos inquéritos nas mãos de um único juiz foi uma medida excepcional. Sem ela, justifica, a trama golpista provavelmente jamais teria sido desvendada.
Na segunda-feira 3, o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, impediu que essa exceção desse um passo adiante para se converter em regra. Há duas semanas, a Polícia Federal havia pedido ao Supremo que enviasse ao ministro Flávio Dino o inquérito da chamada Operação Overclean, uma investigação que identificou uma organização criminosa que teria desviado milhões de reais de obras não realizadas ou superfaturadas em vários estados. Até agora, quinze pessoas foram presas e um jato particular foi interceptado no aeroporto de Brasília com 1,4 milhão de reais em seu interior — dinheiro que, suspeita-se, seria usado para pagamento de propina a agentes públicos. Por envolver uma autoridade com prerrogativa de foro, o inquérito foi enviado ao STF. Por sorteio, o ministro Nunes Marques foi escolhido como relator do caso. A PF, porém, se empenhou em tentar convencer o Supremo a rever a decisão, argumentando que, assim como ocorreu com Alexandre de Moraes nos processos de Jair Bolsonaro, a investigação, por ser correlata, deveria ser conduzida por Flávio Dino.
No fim do ano passado, Dino determinou que fosse realizada uma auditoria para apurar irregularidades no uso das emendas parlamentares. Havia fortes indícios de que recursos enviados por parlamentares estariam sendo desviados. A Operação Overclean confirmou as suspeitas. Para a Polícia Federal, portanto, a correlação entre os casos era evidente. Ao remeter o inquérito ao Supremo, a PF pediu que ele fosse distribuído a Flávio Dino, o que não é um procedimento comum. O pedido foi negado pelo ministro Edson Fachin, que ocupava interinamente a presidência do STF durante o plantão de férias. Como Nunes Marques já havia sido designado relator, a PF então ingressou com um segundo pedido ao presidente da Corte, o que é mais incomum ainda. O delegado Andrei Rodrigues, diretor do órgão, chegou a ir pessoalmente ao gabinete de Barroso expor seus argumentos.
Ao negar o pedido, o presidente do STF evitou a reedição de um precedente perigoso. Há dezenas de inquéritos em andamento apurando suspeitas de desvio de recursos de emendas parlamentares em vários estados. Caso eles esbarrem em alguma autoridade com foro, todos, se prevalecesse a tese da Polícia Federal, seriam automaticamente encaminhados a Flávio Dino. A Lava-Jato é um exemplo do que essa concentração de poder nas mãos de um único magistrado é capaz de produzir. “Se a polícia realmente tiver dirigido o caso ao ministro Flávio Dino, sem base jurídica para isso, estaremos diante do mesmo modus operandi do passado, em que se tentou fixar um juízo universal com base nos interesses de uma agenda específica de persecução”, ressalta o presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Antonio Pedro Melchior. “Isso ofende os princípios do juiz natural e do devido processo legal e atenta contra a própria dignidade da Justiça”, completa.
Instado a se manifestar, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, afirmou que, ao contrário do caso de emendas sob responsabilidade de Dino, que discute critérios objetivos para rastrear o envio de dinheiro público para obras, a Operação Overclean trata de uma suspeita concreta de corrupção, não havendo semelhança entre os dois temas a ponto de unificá-los sob a mesma relatoria. “Os elementos disponíveis nos autos não caracterizam esse pressuposto”, escreveu. Barroso concordou com o parecer do Ministério Público e concluiu que “não há, no atual estágio das apurações, identidade de partes ou de origens que justifique a vinculação deste procedimento criminal com as investigações determinadas pelo ministro Flávio Dino”.
O empenho em enviar o inquérito da Operação Overclean ao gabinete do ministro Flávio Dino transcende a questão jurídica. Há uma miríade de interesses cercando o caso. A alegação formal da Polícia Federal é de que a centralização das investigações no gabinete do ex-chefe da Justiça do governo Lula poderia facilitar o trabalho de “desarticular não apenas os esquemas regionais, mas também ampliar a responsabilização de agentes políticos e administrativos que utilizam as emendas parlamentares como instrumento de desvio de recursos públicos”. Uma autoridade ligada à investigação, no entanto, disse a VEJA que, na verdade, o que impera é um receio de que Nunes Marques seja pouco rigoroso com as provas levantadas ou que simplesmente não dê continuidade às apurações. A insinuação, grave, chegou ao conhecimento do ministro através de seus próprios colegas. “Não se pode colocar em suspeição os ministros e o Supremo Tribunal Federal com base nesse tipo de intriga”, destaca Melchior. Há receio de outras partes de que o caso também esteja sendo conduzido com objetivos políticos.
O estado de atenção sobre a Overclean é plenamente justificado. Tudo indica que a operação puxou o fio de um novelo que pode levar a um gigantesco escândalo de corrupção. Parlamentares destinaram recursos do Orçamento para obras em vários estados, parte desse dinheiro foi desviada e retornou para alguns em forma de propina. Um dos citados no inquérito é o deputado federal Elmar Nascimento (BA). O esquema envolveria dirigentes e empresários ligados ao partido dele, o União Brasil. A legenda integra a base de apoio do governo Lula, comanda três ministérios — incluindo o do Desenvolvimento Regional, pasta à qual está subordinado o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), de onde saíram os recursos desviados —, tem como um de seus maiores expoentes o recém-empossado presidente do Congresso, senador Davi Alcolumbre (AP), e já lançou um pré-candidato à Presidência da República, o governador de Goiás, Ronaldo Caiado. Para alimentar ainda mais algumas teorias, o União Brasil também tem uma ala que faz oposição ao governo, sendo que um dos líderes é o ex-prefeito de Salvador ACM Neto.
No relatório enviado ao Supremo, a Polícia Federal informa que Elmar, uma assessora de Alcolumbre e ACM Neto são citados em mensagens trocadas pelos criminosos. No mesmo documento, os investigadores destacaram que a quadrilha possui ramificações na Bahia, de Elmar Nascimento e ACM Neto, no Amapá, de Davi Alcolumbre, e em Goiás, de Ronaldo Caiado. De novo, até onde se sabe, não há nenhuma evidência minimamente concreta de participação direta desses políticos no esquema de corrupção. “Para nós independe se é o ministro A ou o ministro B. O que nos importa é a higidez do processo, que esteja no foro competente, que seja instruído adequadamente e que leve às consequências jurídico-legais”, disse o delegado Andrei Rodrigues em uma entrevista ao programa Roda Viva. Sob a batuta de Nunes Marques, os próximos passos da investigação vão mostrar se procedem as preocupações do governo, da oposição, da polícia e da classe política em geral.
Publicado em VEJA de 7 de fevereiro de 2025, edição nº 2930