O financiamento de um remédio de alto custo usado no tratamento da distrofia muscular de Duchenne abriu um impasse entre o governo federal e a farmacêutica Roche, em negociações mediadas pelo STF (Supremo Tribunal Federal).
O medicamento Elevidys, que tem custo médio de R$ 17 milhões, ainda não está disponível no SUS (Sistema Único de Saúde) e está em avaliação pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Devido a essa situação, famílias têm recorrido à Justiça para que o Ministério da Saúde cubra os custos. Hoje, 108 ações judiciais estão em andamento, aguardando o desfecho do possível acordo, mas já houve 19 decisões liminares (provisórias) determinando à União fornecer o Elevidys.
O ministro Gilmar Mendes, do STF, suspendeu parte das decisões e abriu a tentativa de conciliação. Foram preservadas aquelas que beneficiam crianças de até sete anos.
O governo federal, representado pelo Ministério da Saúde e pela AGU (Advocacia-Geral da União), resiste à disponibilização do medicamento no SUS porque, além do alto custo, considera, entre outros motivos, que os estudos não demonstraram benefícios significativos na qualidade de vida dos pacientes.
A AGU informou em nota à reportagem que é inviável financeiramente a Saúde ter que disponibilizar o remédio. A estimativa é que cerca de 1.600 pacientes se enquadram na faixa etária para o uso. Se todos receberem o tratamento, o impacto chegaria a R$ 27,2 bilhões, o que sacrificaria outras políticas públicas.
As reuniões sobre o tema são conduzidas de forma sigilosa no STF. A próxima sessão está agendada para esta segunda-feira (21).
A distrofia muscular de Duchenne é uma doença rara que causa fraqueza progressiva dos músculos, levando com o tempo à perda de mobilidade e comprometendo as funções respiratória e cardíaca.
Por determinação da Justiça, a Saúde já pagou R$ 52,8 milhões para custear a entrega da terapia a três crianças. Apenas em 2024, a pasta comandada por Nísia Trindade empenhou (etapa que antecede o pagamento) R$ 1,7 bilhão para cumprir decisões judiciais sobre o fornecimento de diferentes tratamentos.
A AGU disse em nota que há uma norma que impede o estado de fornecer medicamentos experimentais, e mesmo remédios registrados só podem ser fornecidos judicialmente se comprovada sua eficácia, acurácia, efetividade e segurança, baseadas em evidências científicas robustas.
Um documento interno da Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias), ligada ao Ministério da Saúde, ressalta que ainda há dúvidas sobre os benefícios do Elevidys e sua segurança a longo prazo, uma vez que as evidências são baseadas em poucos estudos, realizados com um número limitado de participantes.
Já a Roche argumenta que o medicamento demonstrou benefícios em desfechos secundários, como estabilizar ou reduzir a progressão da doença em pacientes tratados. Além disso, segundo o laboratório, ele trouxe melhora no tempo que as crianças levam para se levantar do chão e percorrer dez metros.
No entanto, a empresa reconheceu que o medicamento não atingiu o desfecho principal, não apresentando resultados na pontuação da escala North Star Ambulatory Assessment, que avalia a função dos membros inferiores, em crianças de 4 a 7 anos com a capacidade de caminhar preservada.
A Sociedade Brasileira de Genética Médica e Genômica e a ADB (Aliança Distrofia Brasil) também têm ressalvas ao medicamento. A primeira aponta que o tratamento não tem mostrado evolução nos pacientes, enquanto a ADB expressa preocupação com a falta de dados sobre os desfechos clínicos do uso do medicamento.
A Folha teve acesso a um parecer da AGU que questiona, ainda, parte das 55 ações protocoladas até a elaboração do documento, apontando que 20 delas envolvem pacientes excluídos dos estudos que fundamentaram o uso do medicamento.
A AGU também destacou que 38 ações foram abertas com base em prescrição de um único médico, o neurologista infantil Luís Fernando Grossklauss. Com isso, haveria a “necessidade de se discutir com maior abrangência os limites éticos existentes em grande quantidade de prescrições similares, oriundas de um mesmo profissional”, disse o órgão.
Grossklauss defende o uso do medicamento, afirmando que ele consegue estabilizar o quadro dos pacientes. No entanto, o profissional reconhece que ainda não é possível determinar por quanto tempo essa estabilização pode ser mantida.
“Estou falando de uma doença degenerativa que a criança vai perdendo pontuação em uma escala. Para uma doença degenerativa, estabilização é uma maravilha”, afirmou o médico. Ele negou receber qualquer pagamento de farmacêuticas para prescrever o medicamento.
O profissional justificou a semelhança dos laudos pela característica comum da doença, que resulta na perda progressiva de força muscular. Também afirmou que há escassez de especialistas que tratam esse tipo de condição.
Questionado sobre a prescrição para faixas etárias fora do intervalo estudado, de 4 a 7 anos, o médico disse que segue as orientações da FDA (Food and Drug Administration), agência reguladora dos Estados Unidos, que aprovou o uso do medicamento de forma definitiva para crianças a partir dos quatro anos e que ainda estejam andando.
A AGU, entretanto, diz que no processo de registro na FDA foram juntadas várias manifestações técnicas apontando pouco ou nenhum resultado para os pacientes que usaram o remédio na fase de pesquisa.
“Há informação, ainda, de que aproximadamente 40% dos pacientes que receberam esse medicamento tiveram efeitos colaterais de natureza grave, como miocardite e problemas no fígado”, disse a AGU. A Roche afirmou que estudos já provaram a segurança do produto.
A Anvisa afirmou, em nota, que a análise está sendo feita para o fornecimento do medicamento em crianças de 4 a 7 anos. No momento, a agência aguarda resposta dos últimos pedidos de informações feitos à Roche, enviado em setembro de 2024.
A discussão sobre o medicamento se intensifica por ser o único que atua diretamente na causa da doença. Atualmente, o tratamento disponível para crianças é limitado ao uso de corticoides e fisioterapia, que apenas reduzem os impactos.
Essa nova opção trouxe esperança para a família de Raul Rassele, de 4 anos. Seus pais, Deborah Rassele e Rafael Rassele, entraram na Justiça e criaram uma vaquinha online para financiar o tratamento. Raul faz uso diário de corticoides desde o ano passado. Para Deborah, a estabilização da doença já traz esperança.
“Apesar do custo exorbitante, o medicamento existe, e Raul tem direito a recebê-lo. Não quero que, daqui a 20 anos, ele esteja apenas piscando os olhos. Hoje, ele diz que corre igual ao Flash”, afirmou, em referência ao personagem de história em quadrinhos cujo superpoder é a velocidade.
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