A morte está por todo lado, mas Pedro Almodóvar não consegue assimilá-la. Foi a direção de Tilda Swinton como Martha, sua personagem em “O Quarto Ao Lado”, que o fez conviver melhor com a ideia do fim, disse ele no Festival de Veneza, onde recebeu o Leão de Ouro, o prêmio máximo do evento, pelo longa-metragem.
Para Swinton, por outro lado, viver a protagonista foi como saborear um novo nascimento —artístico, no caso. “Senti como se fosse meu primeiro filme, como se eu tivesse 18 anos e nunca tivesse pisado em um set antes”, diz ela, recostada sobre um sofá e vestindo uma camiseta de corações. “Nunca trabalhei desse jeito antes. Almodóvar gosta de ensaiar por meses, para depois gravar muito rápido. Ele sabia o que queria, e quando conseguia, seguia em frente.”
O espanhol pediu que ela e Julianne Moore dessem às personagens um tom contido, até austero, para evitar o melodrama diante de uma narrativa já muito emotiva. Na trama, inspirada no livro “What Are You Going Through”, de Sigrid Nunez, Martha, uma correspondente de guerra, papel de Swinton, recebe o diagnóstico de câncer terminal.
Ao mesmo tempo, por uma coincidência, ela também se reaproxima de Ingrid, escritora renomada de ficção e apavorada pela morte, com quem teve uma forte amizade no passado. Martha não quer sofrer antes de morrer e faz um pedido incomum à amiga. Ela aluga uma casa em meio à natureza e pede que Ingrid fique hospedada no quarto ao lado, acompanhando-a em seus últimos dias —até que Martha tire a própria vida com um comprimido utilizado para eutanásia.
“Existem muitas maneiras de existir dentro de uma tragédia. Estive muitas vezes, na minha vida, na posição de Ingrid. A minha primeira Martha me ensinou a atitude de vivacidade absoluta em face à morte”, diz Swinton.
Ainda que as aflições de Martha tomem parte das conversas durante o retiro, a vida, mais do que a morte, é quem pauta a convivência das duas, que dividem lembranças, segredos e afeto. Assim como em “Dor e Glória”, Almodóvar volta a meditar sobre como o regresso de um velho amigo pode reavivar verdades há muito escondidas —tema que também atiça a curiosidade de Swinton.
“O que acho bonito no filme é a maneira como essas duas mulheres transferem a coragem uma para a outra”, diz. “Me interessam os laços antigos, aos quais podemos recorrer e que nos permitem viver mais facilmente. Fazer amigos é sempre um milagre, especialmente nesse momento da vida.”
Ainda que “O Quarto Ao Lado” tenha aquecido o debate em torno da eutanásia em Veneza, Swinton evita a palavra. “Para mim, o filme é mais sobre morrer com dignidade. Martha foi autodeterminada e independente durante toda sua vida e não tem interesse em sentir pena de si mesma. É extremamente importante que ela tenha controle sobre sua vida, inclusive no momento em que a abandona.”
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Como era esperado para um filme de Almodóvar, o tema da maternidade volta a ser explorado —desta vez, pelo distanciamento entre Martha e sua filha. A praticidade da protagonista é posta à prova quando ela é forçada a reconsiderar escolhas de seu passado envolvendo a criação da menina, desde não falar sobre o pai, que ela considera um fraco, até a criação fria devido às viagens constantes a trabalho. “Vivi como um homem”, confessa Martha, em certo momento, ao se referir à priorização de sua carreira, sem remorsos.
A personagem, que tensiona discretamente as limitações e divisões entre os gêneros, parece cair como uma luva à atriz, que evoca uma imagem andrógina —eternizada em sua interpretação de “Orlando”, clássico de Virginia Woolf levado para as telonas em 1992.
A falta de fluidez de gênero é que me confunde. A ideia de não ter licença para assumir e experimentar qualquer forma, narrativa ou identidade. Essa é uma das honras da arte performática. Isso para mim é liberdade.
Com 30 anos de uma carreira trilhada especialmente no cinema independente, Swinton se considera uma turista em Hollywood, onde ficou conhecida pelos papéis inesperados e, por vezes, excêntricos. É o caso de “Precisamos Falar Sobre Kevin”, thriller em que ela vive a mãe de um aluno responsável por um massacre escolar, ou “Amantes Eternos”, em que é uma vampira punk.
O visual um tanto onírico a levou a marcar uma geração como a Feiticeira Branca, nas adaptações para o cinema de “As Crônicas de Nárnia”, e a se tornar a queridinha do diretor Wes Anderson, conhecido por trabalhar personagens socialmente deslocados em cenários extravagantes. “Depois de adultos, os atores se esquecem [da fluidez] para se apegarem a alguma identidade. Eu não sou uma atriz de verdade, então nunca me apeguei a nenhuma identidade específica”, brinca.
Uma pitada de áurea fantástica, que ela aprecia, está também em “O Quarto Ao Lado” —não só no tom rosado da neve que cai fora da casa de Ingrid e Martha ou nas cores vibrantes que aquecem o enredo, mas também na condução que Almodóvar faz do inglês.
“Ele não está ouvindo a língua, mas sua sonoridade. Ele nos pedia para repetir as falas nos ensaios para entender sua musicalidade. Falei com atores que ele dirigiu em espanhol, e ele fazia o mesmo”, diz Swinton. “O espanhol é um pouco exagerado, um pouco elevado. Não é realismo. E Almodóvar não está interessado no naturalismo, mas nesse leve conto de fadas.”
O encanto sutil suaviza o pragmatismo de Martha, endurecida pela cobertura de guerras. Para fazer a personagem, Swinton diz ter se inspirado nas memórias da repórter Martha Gellhorn, considerada uma das maiores correspondentes de guerra do século passado. “O verdadeiro tema do filme, para mim, é testemunhar. É sobre não desviar o olhar”, diz.
Martha pede que Ingrid não deixe que seu temor da morte a impeça de acompanhá-la em seus últimos dias. Ao mesmo tempo, a condição de Martha provoca em Ingrid uma reflexão sobre a vida possível em um mundo à beira de um colapso climático, pautado pelo consumismo e pela violência.
“Martha não desviou o olhar em sua vida. Ela foi testemunha como correspondente de guerra. É um conto de fadas sobre duas mulheres, mas também sobre todos estarmos no quarto ao lado de todos nós, o tempo todo”, diz Swinton. “Estamos no quarto ao lado de Gaza. Estamos no quarto ao lado da Síria, de Beirute, do Iêmen e dos Estados Unidos. É importante que nos lembremos disso, para que não desviemos o olhar, da vida dos outros, muito menos de suas resistências e dores.”