Os colonizadores vieram do norte. Brancos, evidentemente. Aos poucos, foram tomando o lugar dos nativos, retintos, na calota polar mais conhecida como cocuruto. Quando se viram em maioria, rumaram ao sul —barba e bigode—, mesclaram-se às populações originárias, depois as exterminaram por completo.
Levou anos, mas conseguiram atravessar o Atlântico do pescoço e desembarcar nas Américas do meu peito. (Os últimos aborígenes sobrevivem escondidos nas grutas de minhas axilas). Meu temor, agora, é que os invasores cheguem às zonas equatorianas, onde a melanina ainda resiste como último reduto do vigor endógeno.
Minto. Não é o último reduto. Enquanto todo o corpo entra no outono, uma região decidiu que é primavera: minhas orelhas. Onde antes havia apenas deserto, ou, no máximo, uma tundra ralinha, começou a nascer, depois dos 40, uma mata atlântica com densos cipoais. De uns tempos pra cá tenho ouvido um zumbido. Minha otorrino diz que é tinnitus, mas creio que são os gritos dos ácaros brincando de Tarzan. Como são minúsculos e têm a voz fininha, o “OOooooooooooOOOOoooOOOOoooo” acaba soando como “twiiiiiiiiiiiinnnnn”.
A que se deve esta tardia adolescência auricular? Seria um prêmio de consolação? Num país em recessão, uma espécie de Zona Franca de Manaus? Uma Vale, uma JBS, uma Ambev, produzindo queratina enlouquecidamente? Ou, do contrário, em vez de representar uma vanguarda industrial, minhas orelhas são retardatárias, uma região do terceiro mundo com uma modernização tardia? Tigres asiáticos com hirsutos bigodes?
Perguntei ao meu dermatologista se não seria possível fazer um implante, tirando o tapete das orelhas e fixando-o no semiárido das minhas entradas. Infelizmente, não. Pensei numa alternativa. Torcer para que os fios cresçam mais e quando ficar careca, fazer um —comb-over aquela técnica de pentear as laterais pra cima, cobrindo a lustrosa calva.
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Comb-over é sempre ridículo. Que tal, então, uma solução mais raiz: uns tererês? Se também essa opção for, digamos, esteticamente reprovável, vou botar uns bobes nesses pelos, comprar um terno preto, uma cartola de feltro e me converter num judeu ortodoxo. (Embora o mais correto, diante da “apropriação cultural”, seria me identificar como judeu heterodoxo).
Paro diante do espelho com uma pinça na mão. Hesito. Deveria eu, reacionário, exterminar os revoltosos? Ou, quem sabe, numa atitude decolonial, pegar uma gilete e arrasar com os colonizadores? Terceira opção: negar a polarização, que tão mal tem feito a este mundo e apostar na convivência pacífica entre as duas populações pilosas? Seria eu um Netanyahu, um Toussaint Louverture (líder da revolução haitiana) ou um Martin Luther King?
No fim, dou uma de Kassab —nem de direita, nem de esquerda, nem de centro. Arranco os branquelos mais radicais —os Proud Boys que, como Elon Musk, saúdam-me em ângulo de 45 graus, em clara alusão a vocês sabem quem— e suprimo também os pelos mais grossos das orelhas.
Sinto vergonha da minha covardia, mas envelhecer não é fácil. A gente fica nessa gangorra, um dia casaquinho no ombro, no outro compra um skate —e no fim não fará a menor diferença a cor dos pelos ou dos olhos que essa terra há de comer. Vixi, que final de crônica mais triste. Não era a minha intenção.
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