A variedade cromática dos livros sempre foi um problema para arquitetos e decoradores. Como conciliar a paleta de cores da indústria editorial, mais extensa que a de um catálogo de loja de tintas, com o senso de harmonia e equilíbrio exigido de profissionais que cobram caro por isso?
Diversas soluções para o problema foram tentadas, e já falaremos delas, mas nenhuma tão genial quanto a que vem se consagrando nos últimos anos e que se observa neste momento na maioria dos ambientes residenciais do CasaCor Rio: o vandalismo.
A sacada é tão brilhante quanto simples: por dentro, em seu conjunto de páginas, aquilo que o jargão editorial chama de miolo, livros são quase monocromáticos –vão do branco ao bege, tons que felizmente se encaixam bem em propostas minimalistas, “neutras”, que são tendência nos mais elegantes interiores contemporâneos.
Assim, basta arrancar com cuidado a capa dos bichinhos —o que inclui, atenção, lombada e contracapa— e deixá-los pelados, reduzidos ao seu essencial nude. O tal miolo é, paradoxalmente, o paraíso dos desmiolados.
Há aqui um paralelo com a ideia de “conteúdo”, palavra que nosso século vem usando para patrolar um rico ecossistema de gêneros artísticos e informativos. O miolo é o “conteúdo” do livro, aquilo em que todos os espécimes se igualam. Pronto: o velho incômodo da diversidade cromática desses objetos vintage se resolve num passe de mágica.
A solução vândala tem vantagens evidentes sobre outras que já foram tentadas ao longo da história. Encadernar uma biblioteca inteira em elegantes matizes de cores frias, tom sobre tom, funciona em determinadas situações, mas custa caro e pode dar ao ambiente uma gravidade aristocrática indesejada.
Bem pior é a ideia de preencher estantes com painéis de madeira que simulam uma fileira de lombadas. Sempre pode aparecer uma visita intrometida para tentar tirar um livro da prateleira e, percebendo a fraude, espalhar para todo mundo que o dono da casa é um leitor fake.
Até mesmo uma proposta refinada e sensata como a de organizar os livros por cores, ignorando todos os seus outros critérios de parentesco, já rendeu dissabores sociais parecidos com o das lombadas de mentira.
Esnobismo é uma praga. Melhor evitar as sobrancelhas arqueadas de visitas que abrem sorrisos sarcásticos ao descobrir as obras completas de Shakespeare, em capa dura vermelha, entre um rubro guia de sex shops de Amsterdã e um manual igualmente escarlate de mecânica de motocicletas.
Claro que o ideal seria não ter em casa livro nenhum. Essa é, de fato, a saída adotada pela maioria dos clientes de serviços de decoração. No entanto, há estratos de nossa sociedade hipócrita que, mesmo tendo aberto um livro pela última vez em 1989, quando a escola os obrigou, insistem em atribuir valor ornamental a esses artefatos.
É em casos assim que o vandalismo minimalista se apresenta como a melhor alternativa. Um último cuidado: as lombadas desencapadas ficam todas iguais, o que dificulta a tarefa de quem se aproxime desses livros com um deslocado espírito de leitor. Basta não cometer tal erro que a solução é perfeita.
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