Igor Gielow
A Rússia é um país que adora batizar edifícios públicos e redes de metrô, mas não estradas. Se o fizesse, ao estilo brasileiro, a rodovia M-14 e sua continuação até a Crimeia poderia ganhar a alcunha de “via Putin”.
Os 340 km ligam a fronteira internacionalmente reconhecida da Ucrânia com a Rússia até Guenitchek, capital da administração do Kremlin dos 60% da província de Kherson que controla, são parte central do esforço de integração de Moscou na região.
As estradas já existiam, mas estavam em condições apenas razoáveis, segundo moradores. Agora, o trecho principal, os 285 km entre Mariupol e a cidadezinha na margem do mar de Azov, está sendo duplicado e recebeu melhorias.
Não é apenas um cartão de visitas para quem é chamado de ocupante por Kiev, e sim uma rota vital de transporte de suprimentos da Rússia continental para a península anexada em 2014.
A via usual, a ponte inaugurada por Putin em 2018, tornou-se excessivamente visada, embora ainda tenha papel importante por ter linha férrea. Um segundo ramal ferroviário está em construção sob um certo segredo, para evitar ataques da Ucrânia contra seus segmentos, mas estima-se que terá cerca de 300 km e estará pronto em breve.
Enquanto isso, a “via Putin” dá conta do tráfego pesado de veículos militares entre carros chineses elétricos e antigos Lada soviéticos, a mistura que vai se tornando mais obsoleta à medida que se avança a oeste, rumo a Kherson pelas regiões de Donetsk e Zaporíjia.
No geral, é uma estrada como qualquer outra, com postos e áreas de descanso para caminhoneiros. O litro da gasolina de 95 octanas custa o mesmo do que em Rostov, a região russa vizinha —entre R$ 3,5 e R$ 4,5.
É uma rota muito vigiada. No dia que passou por lá, no fim de outubro, a reportagem contou 13 pontos de checagem militar na rota Mariupol-Guenitchek.
De lá para a Crimeia, mais dois em 40 km, não há tanta presença ostensiva, apesar de a guerra estar à volta na forma de comboios, helicópteros militares e o risco constante de ataques com mísseis e drones.
Há outra impressão que chama a atenção, no caso na comparação possível. Quando a Folha visitou a Crimeia em 2019, era visível o esmero no trato das estradas e da infraestrutura. Os 130 km que unem o postos de controle da divisa com Kherson à capital, Simferopol, são marcados por uma buraqueira notável.
Parte disso se explica pelo tempo: antes da invasão da Ucrânia em 2022, a anexação da Crimeia era criticada como ilegal pela ONU, mas tomada como fato consumado no mundo —tanto que Putin sediou a Copa de 2018 criticado, mas com pompas.
Com isso, o dinheiro inicialmente aplicado lá agora se direciona para o que a elite russa chama de “novos territórios”, as quatro regiões anexadas em 30 de setembro de 2022, das quais Moscou contra cerca de 70%.
Nelas, desde 2023 a dotação orçamentária é equivalente a R$ 60 bilhões, segundo dados públicos, embora não haja uma discriminação total —presume-se que boa parte dos ditos gastos secretos sejam para infraestrutura de defesa, consolidando a presença russa na região.