A Rússia está acelerando o passo de sua guerra contra a Ucrânia, avançando de forma não vista desde que invadiu o país vizinho, em 2022. Ao mesmo tempo, cristaliza sua presença civil e militar nas quatro regiões que anexou, consolidando ganhos ao expandir obras.
A Folha testemunhou esse processo durante uma visita de sete dias a três das áreas que Vladimir Putin incorporou à Federação Russa —Donetsk, Zaporíjia e Kherson—, e à Crimeia, anexada em 2014 após a derrubada de um governo pró-Moscou em Kiev.
O raro acesso dado a um jornalista ocidental permitiu um vislumbre das nuances da presença russa, que é qualificada como ilegal pela ONU —uma posição esposada pelo Brasil, que de resto descarta as sanções contra Moscou.
Sem pretensão de amostragem científica, a reportagem pôde ver gradações diferentes da presença do Estado russo e a reação de moradores, militares e autoridades locais à nova realidade que se desenha, enquanto aumenta a expectativa por negociações entre Ucrânia e Moscou com a chegada de Donald Trump à Casa Branca, em janeiro.
A máquina de guerra russa é o que mais impressiona. Nos 1.200 km que separam Moscou de Donetsk, a capital da província homônima e principal cidade da região, já é possível ver intensa movimentação de comboios militares na rodovia M-4 a partir da área de Voronej.
Em Rostov, ao lado de Donetsk, os caminhões verdes com a insígnia Z, símbolo da invasão, estão por todo lado, e nas regiões ocupadas, veículos militares superam os civis nas estradas, dia e noite.
O ritmo acompanha os ganhos de Putin, que avançou dezenas de quilômetros em Donetsk, afastando a linha de frente da capital pela primeira vez desde 2014, quando ela foi tomada por separatistas pró-Moscou. Agora suas forças começam a cercar o centro logístico de Pokrovsk, ameaçando implodir a defesa de Kiev na província.
O marco dessa virada foi a tomada de Avdiivka, periferia de Donetsk, em fevereiro. “A frente de batalha mais próxima ficava a 2 km daqui. Agora, está a 20 km”, diz a representante da chancelaria russa na região, Natalia Mikhailova.
As explosões ainda são constantes, mas remetem à defesa antiaérea, e não ao bombardeio ucraniano com artilharia. Quando a reportagem esteve perto da frente, a propalada dominância russa em disparos de obuses era amplamente perceptível: tudo tremia de forma sincopada.
Na semana passada, o chefe militar ucraniano, Oleksander Sirskii, disse que suas forças estavam sob o maior fogo desde que os tanques de Putin invadiram o país em 24 de fevereiro de 2022. O governo de Volodimir Zelenski acusa os russos de fazerem uso não só de munição dos aliados da Coreia do Norte, mas também de tropas da ditadura, o que o Kremlin não confirma, nem nega.
A esse avanço sobrepõe-se o estabelecimento da infraestrutura civil nas regiões anexadas, que desde 2023 tem 1 trilhão de rublos (quase R$ 60 bilhões) alocados no Orçamento russo. Segundo dados de julho deste ano, já foram construídos ou reparados 11.262 edifícios, de casas destruídas a novas escolas.
Putin anunciou que 3.000 km de estradas foram reparados, e 500 agências bancárias, abertas —a maioria do onipresente PSB, um banco ligado a militares de Moscou, o que sugere direcionamento de novos negócios.
O processo é imperfeito: até portadores de cartões de crédito russo têm dificuldade de vê-los funcionando nas áreas anexadas, e o mesmo ocorre com celulares de moscovitas em visita. Para chips estrangeiros, só Wi-Fi.
Essa consolidação russa também varia pelo território ocupado, e é mais intensa quão mais ao leste se vai, seguindo o padrão da anexação: cerca de 30% da área incorporada ao todo não está sob controle russo.
Donetsk é parte do Donbass, a bacia do rio Don em russo, ao lado de Lugansk. Ambas as regiões sempre foram russófonas e estão na origem do conflito atual, ainda que o único censo feito pela Ucrânia, em 2001, tenha apontado que 40% da população era russa étnica.
O tema é contencioso, pois a estrutura demográfica mudou muito de lá para cá e, com a guerra civil que estourou em 2014, tudo ficou bagunçado. Russos falam em domínio histórico da região e criticam a “ucrainização” dos anos soviéticos; Kiev acusa Moscou de limpeza étnica.
Em Mariupol, cidade vital no caminho entre Donbass e Crimeia cujo cerco virou um documentário oscarizado neste ano, o contraste é mais evidente. Putin transformou a cidade, que foi 80% destruída, numa vitrine da reconstrução proposta para o pós-guerra.
A demografia aqui é confusa. O governo estima que, dos 500 mil moradores de antes da invasão, 300 mil estejam na cidade. Boa parte deles, contudo, veio de outras regiões, dada abundância de emprego, e muitos deles são ucranianos étnicos.
“Só fica sem trabalhar aqui quem quer”, diz Mikhail Glebov, conselheiro da chancelaria russa na região. O Serviço Federal de Estatística diz que 100 mil pessoas deixaram em 2023 as regiões anexadas, presumivelmente ucranianos que conseguiram ir para as áreas sob controle de Kiev. Mas o número de quem chegou é incerto.
Ao todo, estima-se que as regiões tenham hoje algo como 3,2 milhões de habitantes, ante 6,7 milhões de antes da guerra. Já a Crimeia, mais integrada à Rússia, tem 1,9 milhão de moradores.
Nas ruas anexadas, de todo modo, há zero dúvidas sobre quem está em comando na região de Donetsk. O mesmo não se vê quanto mais a oeste se vai, contudo. Em Kherson, a maior militarização do cotidiano, com pontos fixos de presença de soldados, aponta um clima de ocupação mais perceptível.
Lá, placas de lojas e de automóveis em ucraniano ainda são comuns, algo inexistente em Donetsk e parcialmente visível em Zaporíjia. O aspecto da infraestrutura também é bem mais degradado, com estradas em pior condição, por exemplo.
Além disso, a resistência à presença russa é maior. “Temos de distribuir mantimentos com ajuda do Exército”, relata a voluntária Olga Iavorskaia, à frente de um centro em Guenitchesk, cidadezinha portuária transformada em centro administrativo de Moscou da região depois que a Ucrânia retomou Kherson, a capital homônima, no fim de 2022.
Em todos os locais, há problemas decorrentes da destruição de sistemas energéticos e de distribuição de água. O Kremlin tem trabalhado para resolver isso com a construção de novos canais, mas Mikhailova diz que tudo só será resolvido com a conquista dos 40% restantes de Donetsk.
O cenário, por óbvio nebuloso no geral, mostra o enraizamento das estruturas russas. Do 1 trilhão de rublos para obras, parte significativa é secreta, indicando investimento em infraestrutura de defesa —os chamados dentes de dragão, triângulos de concreto que impedem a passagem de blindados, estão em todo lugar.
Tudo isso já vinha em curso antes do terremoto geopolítico da eleição de Trump. Visto com moderado otimismo pelos russos, o republicano já disse que quer acabar com a guerra assim que possível, o que supõe forçar Kiev a negociar.
Resta combinar com os russos, que estão com a mão mais alta nesta rodada da guerra. Putin e seus lugares-tenentes já disseram que qualquer conversa passa pela realidade em solo, e está claro que a Rússia trabalha para deixá-la mais próxima de seu desígnio.
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