O paradoxo do moleque.
‘Curra simbólica’ na Rússia ilustra bem o estorvo que é a molecagem brasileira.
Na vasta literatura em que pensadores de diversas épocas tentaram entender, explicar e eventualmente desatar o nó feito de nós que forma o “homo brasiliensis”, talvez ainda falte dar maior atenção à excelente palavra “moleque”.
De origem africana, vinda do quimbundo “muleke” e adotada entre nós na primeira metade do século 17, a palavra tinha o sentido original de menino negro ou mulato de pouca idade. O berço já deixa “moleque” na cara do gol para dar conta de um país em que a herança escravocrata —esta sim maldita— representa até hoje o nó central.
Só que a questão foi se complicando com o tempo. Se de um lado a palavra perdeu seu conteúdo mais obviamente racista à medida que passava a ser aplicada a meninos de variadas cores, e logo a adultos também, do outro ganhou expansões de sentido que a projetaram em duas direções principais, uma positiva e uma negativa: a do sujeito engraçado e a do cafajeste.
Curiosamente, o dicionário “Houaiss” —que dá um discreto show de etimologia como bônus em cada um de seus verbetes— informa que as duas acepções, ambas brasileiras, surgiram ao mesmo tempo, registradas pela primeira vez em 1731: a de “pessoa brincalhona, trocista, engraçada” e a de “indivíduo sem integridade, capaz de procedimentos e sentimentos vis; canalha”.
Nem sempre os dois sentidos se confundem, claro, mas o leitor perspicaz já terá percebido que, longe de incompatíveis, eles podem ser dois pontos de vista sobre a mesma molecagem.
Com sua irresponsabilidade de criança travessa, o moleque pode nos fazer rir de forma cúmplice (“que FDP!” é uma clássica aprovação brasileira). Com sua indignidade de pessoa desprovida de palavra ou senso de decência, pode também nos revoltar (“que FDP!” é uma clássica reprovação universal).
Essa amplitude semântica é útil ao moleque, que nem precisa mudar de palavra quando, apanhado numa torpeza, corre para se refugiar do outro lado do arco semântico: “Puxa, foi só uma brincadeira”. Sim, o moleque é também, com frequência, um covarde que não assume a responsabilidade por nenhum de seus atos.
Que o moleque ocupa posição de destaque na cultura brasileira pode ser constatado no vocabulário do futebol. A história da seleção brasileira é apinhada de episódios em que, vencendo, atribuímos a vitória ao fato de sermos os reis da molecagem: abusados, irreverentes, criativos, debochados. Garrincha é o emblema maior desse ideal futebolístico hoje encarnado em Neymar.
Não menos numerosos são os casos em que, ao perder, atribuímos a derrota ao fato de sermos… bem, moleques: indisciplinados, irresponsáveis, covardes, desprovidos de fibra e hombridade. É o que eu chamo de “paradoxo do moleque”: a ideia de que nosso melhor e nosso pior cabem na mesma palavra.
O vídeo em que turistas brasileiros infelizes —mas de modo algum atípicos— expõem uma simpática jovem russa a uma espécie de curra simbólica, sem que ela faça ideia do que está acontecendo, é uma ilustração dolorosa do encosto em que se transformou nossa cultura da molecagem.
“Ah, estavam só brincando”, “Erraram, mas são boa gente”, “Ninguém tirou pedaço da moça”. A defesa do ato vil vai por aí. Como de hábito, o lado benigno da molecagem brasileira é chamado a servir de álibi ao lado escroto.
E assim vão se espalhando as células cancerosas da misoginia, do machismo, da covardia, da violência, do racismo, da indignidade, da dissimulação, tudo aquilo que aparta o moleque do convívio civilizado e o deixa sem a menor chance de construir um país decente ao seu redor.
Escritor e jornalista, é autor de ‘O Drible’ e ‘Viva a Língua Brasileira’, entre outros.